Limitações para o diagnóstico de sopros cardíacos: o ouvido humano, o ecocardiograma e a ressonância magnética

Por Mardson Medeiros  /

Quais as limitações do ouvido humano, através do estetoscópio, para avaliação dos sopros cardíacos?

No ano de 2005, Kobal SL et al resolverem testar a hipótese de que estudantes de medicina, ainda sem experiência clínica, poderiam ser treinados durante 18 horas para fazer diagnósticos cardíacos acurados com um ultrassom portátil (US). Compararam o desempenho dos estudantes em relação ao de cardiologistas experientes, contudo, os profissionais certificados poderiam utilizar somente o exame físico convencional. 1

Sessenta e um pacientes realizaram, previamente, ecocardiograma transtorácico, sendo incluídos no estudo por conter pelo menos uma das alterações: fração de ejeção do ventrículo esquerdo menor do que 50% ou presença de qualquer valvopatia de grau moderado a importante. 

As avaliações ultrassonográficas foram realizadas por um a dois estudantes de medicina e o exame físico convencional foi conduzido por um a cinco cardiologistas experientes e certificados.

Duzentas e trinta e nove anormalidades foram observadas pelo ecocardiograma. Os estudantes identificaram corretamente 75% (180 de 239) das patologias, enquanto que os cardiologistas encontraram 49% (116 de 239, com p < 0,001).

A especificidade do diagnóstico dos estudantes foi de 87%, enquanto a dos cardiologistas foi de 76% (p < 0,001).

Para as patologias não valvares (115 achados), a sensibilidade dos estudantes foi de 61%, comparado com 47% dos cardiologistas (p = 0,04). 

Havia 124 lesões valvares significativas (111 regurgitações, 13 estenoses). Para os sopros sistólicos, a sensibilidade dos estudantes com US foi de 93%, enquanto a dos cardiologistas foi de 62% (p < 0,001). Para os sopros diastólicos, a sensibilidade dos estudantes foi de 75%, enquanto os cardiologistas reconheceram 16% destas lesões (p < 0,001).

É conhecido que os sopros diastólicos são realmente mais difíceis de serem auscultados, mas não dá para afirmar se a diferença de sensibilidade seria realmente tão grande, haja vista que a subamostra foi composta somente por 13 estenoses.

Por se tratar de estudo observacional e com pequeno número de pacientes, devemos encarar estes resultados como possibilidade, contudo, sem poder descartar o risco de vieses.

De qualquer forma, é curioso observar como o ouvido humano parece ter algumas limitações, quando comparado ao US.

No ano de 2022, Uretsky e colaboradores publicaram um artigo, comparando o desempenho do ecocardiograma transtorácico (ETT) frente a ressonância magnética cardíaca (RMC) na avaliação da Regurgitação Mitral Degenerativa (RMD). 2

Tratou-se de uma coorte, prospectiva, com 152 pacientes (idade média de 61 +- 13 anos; 59% homens), com insuficiência mitral (IM) degenerativa, submetidos ao ETT e RMC para graduação do refluxo. Ao ETT, os pacientes foram graduados com IM definitivamente leve, grau I, grau II, grau III, grau IV ou definitivamente importante. Pela RMC, o volume da IM foi graduado em leve (< 30 mL), grau moderado II (30-44 mL), grau moderado III (45-59 mL), ou importante (> 60 mL). Num subgrupo de 63 pacientes que foi submetido à intervenção mitral com sucesso, 48 (31%) realizaram RMC após a intervenção e foram analisados quanto ao remodelamento reverso.

O resultado sugeriu que somente 52% dos pacientes com IM definitivamente importante pelo ETT tiveram a classificação de IM importante também pela RMC. Achado surpreendente!

A concordância entre os métodos foi de 100% na graduação como definitivamente leve e de 92% para o grau I.

O que pode ter ocorrido? Por que os resultados foram tão discrepantes justamente no grupo de pacientes onde mais se indica intervenção?

Para tentarmos entender o que deve ter ocorrido, precisamos revisar alguns conceitos.

A RMD é uma importante entidade clínica, cuja principal etiologia, nos países desenvolvidos, é a doença valvar mitral degenerativa mixomatosa, com Prolapso da Valva Mitral (PVM), que se caracteriza por IM telessistólica, podendo progredir para ruptura de cordoalhas e flail dos folhetos. É mais encontrada na população de meia idade e idosa. Embora a RMD discreta tenha um bom prognóstico, refluxos mais significativos podem levar ao remodelamento cardíaco com aumento dos volumes do ventrículo esquerdo (VE) e do átrio esquerdo (AE), resultando em insuficiência cardíaca, fibrilação atrial e hipertensão pulmonar. 3

No Brasil, a causa mais frequente de IM é a reumática, sendo mais comum em adultos jovens. 4

O ETT é o exame de primeira linha para avaliação da IM. No ano de 2017, a Sociedade Americana de Ecocardiografia (ASE), em colaboração com a Sociedade de Ressonância Magnética Cardiovascular, atualizou a diretriz de regurgitação valvar com algumas novas recomendações: 5

a) ênfase no reconhecimento de IM não-holossistólica, vista no PVM, com cuidado especial no uso de qualquer medida ao Color Doppler de forma isolada na IM (qualitativa ou quantitativa), tais como área do jato de refluxo, vena contracta, convergência de fluxo e no cálculo da Área Efetiva do Orifício Regurgitante (AOR), porque podem superestimar a gravidade da IM, uma vez que a regurgitação não ocorre durante toda a sístole;

b) necessidade de uma abordagem integrada, usando múltiplos parâmetros de graduação da IM, pois, desta forma, aumenta-se a confiança em relação ao uso de parâmetros isolados, que podem ser influenciados por outros fatores;

c) ênfase no uso do ecocardiograma transesofágico (ETE) ou da RMC nos casos em que a graduação da IM ou o seu mecanismo está com difícil definição ou em questionamento.

No estudo de Uretsky et al, citado acima, a etiologia da RMD foi flail ou PVM em 76% dos casos, com IM excêntrica em 71% e holossistólica em 89%. A concordância de 40 a 52% foi vista para graduação exata entre os dois métodos, subindo para 89% a 91% se uma diferença de dois graus fosse permitida.

Estudos prévios já compararam a graduação da IM pelo ETT e RMC, incluindo o uso da diretriz da ASE. 6-9  Quando avaliamos os resultados gerais destas investigações, a concordância entre os métodos na graduação da IM em leve, moderada e importante variou de 46% a 76%, aumentando para 80% a 90% quando 1 grau de diferenciação foi permitido. Estes estudos comparativos incluíram uma elevada percentagem de pacientes com PVM, com flail dos folhetos e jatos excêntricos, IM telessistólica e múltiplos jatos, condições nas quais a acurácia do ETT, particularmente o color Doppler, torna-se mais problemática. A recomendação do guideline da ASE, nestas situações, é não confiar no color Doppler para quantificação da IM, devendo-se preferir o método volumétrico (veremos mais detalhes adiante).

O color Doppler performa melhor e com maior concordância em pacientes com IM holossistólica, jato central e único (kappa: 0,9). 9

Inicia-se a avaliação valvar subjetivamente com o color Doppler, contudo, uma vez identificado algum grau de refluxo, o ideal seria partir para técnicas quantitativas. Uma das opções é o método de PISA.


Figura mostrando a medida do raio de PISA pelo método da convergência de fluxo 5


O PISA (ou método da convergência de fluxo) se baseia em um princípio da física que mostra que um líquido, ao se aproximar de um orifício restritivo, acelera formando hemisférios concêntricos. A partir de alguns cálculos, consegue-se estimar o tamanho do orifício regurgitante (quanto maior, mais grave a insuficiência mitral) e o volume que regurgita do ventrículo esquerdo para o átrio esquerdo a cada batimento.


Ilustração detalhando condições onde o método da convergência de fluxos pode superestimar a graduação da IM (Volume Regurgitante e Área Efetiva do Orifício Regurgitante)

No topo, vemos a representação de uma IM telessistólica; na parte de baixo, vemos uma convergência de fluxo ovóide (não hemiesférica), devido a falha de coaptação mitral com jato excêntrico (a partir de qual plano medir o raio de PISA?). Em todas estas condições, o método volumétrico seria mais indicado para graduação da IM. 10

O método de PISA possui limitações na IM telessistólica, em jatos excêntricos ou em múltiplos jatos. 11

Método volumétrico. Pela Lei de Frank-Starling, o líquido que passa pela valva mitral e dirige-se para o VE, em condições normais, após a contração ventricular, vai passar com o mesmo volume pela valva aórtica. Contudo, em situações patológicas, quando há IM, parte deste volume irá retornar para o AE, na sístole. Por este método, o Volume Regurgitante (VR) = volume que passa pela valva mitral (VM) - volume que passa pela valva aórtica (VA). A Fração Regurgitante (FR) = VR / VM. Os detalhes de como são realizados estes cálculos ao ETT não são o foco deste texto, apenas o conceito geral.

O método volumétrico pode ser usado no caso de jatos excêntricos e de múltiplos jatos, todavia, possui limitações quando a valva mitral está muito calcificada (dificultando a medida do fluxo) e não pode ser usado quando há insuficiência aórtica significativa associada (pois prejudica a medida dos volumes). 5

Após esta revisão de conceitos, podemos voltar a discutir os achados do trabalho de Uretsky et al. 2

Existem algumas possibilidades para IM importante ter sido superestimado pelo ETT.

Primeiro, 41% dos pacientes desta coorte tinham PVM. Condição mais caracterizada pela IM telessistólica (que poderia superestimar o refluxo), no entanto, os autores mencionaram somente 11% de IM não-holossistólica.

Segundo, 71% dos pacientes tinham IM excêntrica, muitos dos quais com flail, condição que dificulta a graduação da IM pelo color Doppler e método de PISA, com tendência a superestimação.

Terceiro, 20% dos pacientes com IM importante tinham as dimensões do VE e do AE supostamente normais. Isto é extremamente incomum, a menos que a apresentação seja de IM aguda e, geralmente, estes pacientes chegam bem descompensados.

Em editorial do JACC (Journal of the American College of Cardiology), onde a coorte foi publicada, Zoghbi cita que “o ETT com Doppler é o método de imagem de primeira linha e suficiente para maioria dos pacientes com IM, tanto na avaliação inicial quanto para seguimento. Embora o color Doppler seja essencial e útil na maioria das situações, ele pode estar limitado na IM telessistólica, em jatos muito excêntricos e quando há múltiplos jatos. Nestas situações, o método volumétrico é o mais indicado. E isto, infelizmente, não foi tentado na presente investigação”.

Em exames tecnicamente difíceis, inconclusivos ou com resultados conflitantes em relação aos achados clínicos, investigação adicional com ecocardiograma transesofágico (2D ou 3D) ou RMC deve ser considerada.

Por fim, Uretsky et al descreveram que houve um aumento no remodelamento reverso do VE pós-intervenção mitral, classificada pela RMC (p < 0,0001), mas não pelo ETT (p = 0,07).  Considerou, assim, “a IM importante por RMC como um preditor independente de remodelação reversa do VE pós-intervenção mitral”.2 No entanto, diante dos possíveis vieses descritos acima e do fato desta análise de remodelamento reverso ter se baseado em pequeno subgrupo com 31% dos pacientes, aumenta-se o risco de ter ocorrido ao acaso.


Fontes:

1. Kobal SL, Trento L, Baharami S, Tolstrup K, Naqvi TZ, Cercek B, Neuman Y, Mirocha J, Kar S, Forrester JS, Siegel RJ. Comparison of effectiveness of hand-carried ultrasound to bedside cardiovascular physical examination. Am J Cardiol. 2005 Oct 1;96(7):1002-6. doi: 10.1016/j.amjcard.2005.05.060. PMID: 16188532.

2. Uretsky S, Animashaun I, Sakul S, et al. American Society of Echocardiography Algorithm for Degenerative Mitral Regurgitation. J Am Coll Cardiol Img. 2022 May, 15 (5) 747–760. https://doi.org/10.1016/j.jcmg.2021.10.006

3. Otto CM, Nishimura RA, Bonow RO, et al. 2020 ACC/AHA guideline for the management of patients with valvular heart disease: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. J Am Coll Cardiol. 2021;77(4):e25–e197

4. Tarasoutchi F, Montera MW, Ramos AIO, Sampaio RO, Rosa VEE, Accorsi TAD, et al. Atualização das Diretrizes Brasileiras de Valvopatias – 2020. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(4):720-775

5. Zoghbi WA, Adams D, Bonow RO, et al. Recommendations for noninvasive evaluation of native valvular regurgitation: a report from the American Society of Echocardiography developed in collaboration with the Society for Cardiovascular Magnetic Resonance. J Am Soc Echocardiogr. 2017;30:303–371

6. Uretsky S, Gillam L, Lang R, et al. Discordance between echocardiography and MRI in the assessment of mitral regurgitation severity: a prospective multicenter trial. J Am Coll Cardiol. 2015;65:1078–1088.

7. Lopez-Mattei JC, Ibrahim H, Shaikh KA, et al. Comparative assessment of mitral regurgitation severity by transthoracic echocardiography and cardiac magnetic resonance using an integrative and quantitative approach. Am J Cardiol. 2016;117:264–270.

8. Sachdev V, Hannoush H, Sidenko S, et al. Are echocardiography and CMR really discordant in mitral regurgitation? J Am Coll Cardiol Img. 2017;10(7):823–824.

9. Penicka M, Vecera J, Mirica DC, Kotrc M, Kockova R, van Camp G. Prognostic implications of magnetic resonance-derived quantification in asymptomatic patients with organic mitral regurgitation: comparison with Doppler echocardiography–derived integrative approach. Circulation. 2018;137:1349–1360

10. Zoghbi W, et al. Challenges and Opportunities in Evaluating Severity of Degenerative Mitral Regurgitation. J Am Coll Cardiol Img. 2022 May, 15 (5) 761–765. https://doi.org/10.1016/j.jcmg.2022.01.011

11. Hagendorff A, Knebel F, Helfen A, Stöbe S, Haghi D, Ruf T, Lavall D, Knierim J, Altiok E, Brandt R, Merke N, Ewen S. Echocardiographic assessment of mitral regurgitation: discussion of practical and methodologic aspects of severity quantification to improve diagnostic conclusiveness. Clin Res Cardiol. 2021 Nov;110(11):1704-1733. doi: 10.1007/s00392-021-01841-y. Epub 2021 Apr 11. PMID: 33839933; PMCID: PMC8563569.

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ANEXO 1: o que significa o valor de kappa?

Kappa é a relação entre a proporção de vezes que os avaliadores concordam (corrigido para a concordância do acaso) com a proporção máxima de vezes que os avaliadores poderiam concordar (corrigido para a concordância de chance).

Os valores de Kappa variam de -1 até +1. Quanto maior o valor de kappa, mais forte a concordância, da seguinte maneira: 
  • Quando kappa = 1, existe uma concordância perfeita. 
  • Quando kappa = 0, a concordância é aquela que seria esperada ao acaso. 
  • Quando kappa < 0, a concordância é mais fraca do que seria esperado ao acaso, o que raramente ocorre.

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ANEXO 2: como são calculados o VR e a FR pelo método volumétrico do ETT?

Volume mitral = área valvar mitral X VTI mitral (calculados no anel mitral)

Volume aórtico = área VSVE (paraesternal longitudinal) X VTI VSVE (apical)

VR = V mitral – V aórtico

FR = [(V mitral – V aórtico)/V mitral] X 100

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