Reposição de ferro realmente reduz desfecho cardiovascular? AFFIRM-AHF trial

Por Mardson Medeiros /

O AFFIRM-AHF trial teve por objetivo avaliar o efeito da carboximaltose férrica, comparada com placebo, em pacientes que foram estabilizados, após internamento por insuficiência cardíaca (IC) descompensada.1


Qual a probabilidade pré-teste da terapia proposta ser superior ao placebo?

Para isto, precisamos fazer uma breve revisão sobre o que de mais importante havia sido publicado, até então, a respeito.

O FAIR-HF (Ferric Carboxymaltose Assessment in Patients With Iron Deficiency and Chronic Heart Failure) trial mostrou melhora significativa na classificação NYHA, na caminhada de 6 minutos e na qualidade de vida de 459 pacientes com IC crônica, que receberam carboximaltose férrica intravenosa, independente da presença ou não de anemia, desde que ferritina < 100 mg/L ou 100 a 299 mg/L com saturação de transferrina < 20%.2

O IRONOUT HF (Iron Repletion Effects on Oxygen Uptake in Heart Failure) trial mostrou que não havia melhora com a reposição oral.3 Isto pode ser atribuído, teoricamente, a baixa absorção intestinal do ferro, quando reposto por via oral, sendo, portanto, ineficaz para recompor de forma adequada os estoques de ferro dos pacientes com IC.

Assim, consideramos que a via intravenosa deveria ser a preferencial, no caso de um novo estudo sobre este tema, sendo a probabilidade pré-teste baixa a intermediária, haja vista pequeno estudo prévio positivo para desfechos soft.

Mas será que esta reposição de ferro seria capaz de reduzir desfechos duros?

Surgiu, então, a ideia do AFFIRM-AHF, publicado em 2020.
Tratou-se de estudo multicêntrico, randomizado, duplo-cego, em 121 centros na Europa, América do Sul e Singapura, patrocinado pela Vitor Pharma. Pacientes elegíveis para o estudo foram aqueles maiores de 18 anos, com IC aguda e concomitante deficiência de ferro (definida como ferritina <100 µg/L, ou 100–299 µg/L com saturação da transferrina <20%) e com fração de ejeção (FEVE) < 50%.

Vamos dividir a análise do estudo em partes.

Primeiramente, quanto a veracidade.

Precisamos avaliar a possibilidade de possíveis erros sistemáticos (vieses).

A randomização dos 1132 pacientes permitiu a homogeneidade entre os grupos. O tratamento chegou a ser iniciado em 1110 pacientes, sendo 558 no grupo carboximaltose férrica intravenosa e 550 no grupo placebo. Para garantir o cegamento do estudo, o tratamento foi administrado em seringas pretas, por pessoal que não estava envolvido em nenhuma interpretação de resultados.

Como a análise foi por intenção de tratar, precisamos ver se o crossover foi elevado: checando os dados percebemos que não houve mudança de grupos em relação à randomização inicial.

Outro ponto importante é saber quanto a perda de seguimento, pois taxas elevadas poderiam aumentar risco de viés. No entanto, perdeu-se o seguimento somente de dois pacientes (um em cada grupo).

Como o presente estudo foi duplo-cego, reduz-se também o risco de viés de desempenho, como pode ocorrer nos estudos abertos com desfechos soft.

Até o momento, em nossa avaliação, o risco de erro sistemático é baixo.

O passo seguinte seria colocar lupa sobre o desfecho primário escolhido pelos autores. Desfechos muito subjetivos, que dependem da interpretação do pesquisador (exemplo: indicar internamento por IC), aumenta a possibilidade do viés de aferição. Menos frequentes quando são escolhidos desfechos duros, que independem de interpretação ou indicação médica (ex.: mortalidade por todas as causas). 

O desfecho utilizado no trabalho foi hospitalização por IC e morte cardiovascular em até 52 semanas da randomização. Aqui, precisamos ficar atentos, na hora de checar os resultados, pois foi escolhido um endpoint composto, contendo um componente soft (internamento por IC). Sinal de alerta, ligado! Apesar de estudos duplo-cego reduzirem este risco de viés.

Outra etapa do escrutínio seria rastrear quanto a possíveis erros aleatórios (ao acaso), sendo um item importante ver a confiabilidade do valor de P.

Neste ponto, chama atenção o fato de o estudo ter sido negativo (endpoint primário com valor de P não significativo). Senão, vejamos: ocorreram 293 eventos primários (57,2 por 100 pacientes-ano) no grupo terapia contra 372 (72,5 por 100 pacientes-ano) no grupo placebo (RR 0,79; IC 95% 0,62-1,01, p=0,059).

Vendo os desfechos secundários, percebe-se que não houve diferença em relação à mortalidade cardiovascular entre os grupos: 77 (14%) de 558 no grupo carboximaltose férrica versus 78 (14%) no grupo placebo (HR 0,96; IC 95% 0,70-1,32, p=0,81). A diferença significativa apareceu em outro desfecho secundário, hospitalização por IC, sendo 217 (38,9%) casos no grupo terapia versus 294 (53,4%) no grupo placebo (RR 0,74; IC 95% 0,58-0,94, p=0,014).

Desfecho secundário positivo, em estudo com endpoint primário negativo, deve ser interpretado como gerador de hipótese, pois o risco de erro aleatório (resultado ao acaso) está aumentando.

Por outro lado, quando estamos diante de desfecho primário negativo, precisamos avaliar se o estudo não incorreu no erro tipo II (que ocorre quando não rejeitamos uma hipótese nula falsa).

A hipótese nula (teórica), neste caso, seria: a terapia de reposição de ferro não reduz desfecho primário, quando comparada ao placebo. Para abandonar essa hipótese nula (H0) e passar a considerar a terapia como efetiva, um dos critérios seria um valor de P (pré-estabelecido) significativo.

O erro tipo II ocorreria se o benefício da terapia realmente existisse e, por algum motivo estatístico, não se conseguisse demonstrá-lo. Para reduzir o risco de incorrer neste tipo de erro, algumas premissas foram elencadas na metodologia do trabalho: estimou-se que seriam necessários pelo menos 1.000 pacientes (500 em cada grupo) para detectar uma taxa (RR: rate ratio) de 0,75 para o desfecho primário, com um poder de 80% para um valor de alfa de 0,05.

Esta premissa foi respeitada pelos pesquisadores. Deste modo, reduz-se a probabilidade de ter ocorrido erro tipo II.

A conclusão dos autores foi que “em pacientes com deficiência de ferro, FEVE < 50% e que foram estabilizados após um episódio de IC aguda descompensada, o tratamento com carboximaltose férrica intravenosa foi seguro e reduziu o risco de hospitalização por IC, sem efeito aparente na mortalidade cardiovascular”.

Todavia, mais uma vez, na análise de relevância, salientamos que o resultado positivo foi encontrado apenas num desfecho soft e secundário, sendo, portanto, gerador de hipótese. Não sendo possível afirmar, de forma categórica, por este trabalho, como verdadeiro.

E o que dizem as sociedades de especialistas?

A Sociedade Brasileira de Cardiologia, numa atualização da diretriz de insuficiência cardíaca, publicada em 2021, recomenda:4

“Reposição intravenosa de carboximaltose férrica em pacientes com ICFEr e deficiência de ferro (nível ferritina sérica menor que 100 ng/mL ou entre 100-299 ng/mL com saturação de transferrina menor que 20%), mesmo na ausência de anemia para aumentar capacidade para o exercício, qualidade de vida e reduzir a hospitalização”, classe de recomendação IIa e nível de evidência A.

“Reposição intravenosa de carboximaltose férrica em pacientes com ICFEr, admitidos por IC descompensada com deficiência de ferro (ferritina sérica menor que 100 ng/mL ou entre 100-299 ng/ mL, associada à saturação de transferrina menor que 20%) após a estabilização clínica para reduzir readmissão hospitalar”, classe IIa e nível de evidência B.

A diretriz de insuficiência cardíaca da American Heart Association (AHA), publicada em 2022, cita os trabalhos discutidos até aqui, deixando em aberto a possibilidade de reposição venosa com carboximaltose férrica, com possível benefício.5

Por outro lado, estudo randomizado de boa qualidade com alfa darbepoetina em 2278 pacientes não mostrou benefício e aumentou o risco de eventos trombóticos, incluindo AVC. 6-8 Deste modo, terapia com agente estimulante da eritropoetina não está recomendada para o tratamento de anemia em pacientes com IC.5

Importante também destacar que o custo da ampola de carboximaltose férrica ainda é bastante elevado.



Fontes:
1. Ponikowski P, Kirwan BA, Anker SD, et al. Ferric carboxymaltose for iron deficiency at discharge after acute heart failure: a multicentre, double-blind, randomised, controlled trial. Lancet. 2020;396:1895–1904.

2. Anker SD, Comin Colet J, Filippatos G, et al. Ferric carboxymaltose in patients with heart failure and iron deficiency. N Engl J Med. 2009;361:2436–2448

3. Lewis GD, Malhotra R, Hernandez AF, et al. Effect of oral iron repletion on exercise capacity in patients with heart failure with reduced ejection fraction and iron deficiency: the IRONOUT HF randomized clinical trial. JAMA. 2017;317:1958–1966

4. Marcondes-Braga FG, Moura LAZ, Issa VS, Vieira JL, Rohde LE, Simões MV, et al. Atualização de Tópicos Emergentes da Diretriz de Insuficiência Cardíaca – 2021. Arq Bras Cardiol. 2021; [online].ahead print, PP.0-0

5. Heidenreich PA, Bozkurt B, Aguilar D, et al. Citation: 2022 AHA/ACC/HFSA Guideline for the Management of Heart Failure: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. J Am Coll Cardiol 2022; Apr 1

6. Swedberg K, Young JB, Anand IS, et al. Treatment of anemia with darbepoetin alfa in systolic heart failure. N Engl J Med. 2013;368:1210–1219

7. Kang J, Park J, Lee JM, et al. The effects of erythropoiesis stimulating therapy for anemia in chronic heart failure: A meta-analysis of randomized clinical trials. Int J Cardiol. 2016;218:12–22.

8. Bello NA, Lewis EF, Desai AS, et al. Increased risk of stroke with darbepoetin alfa in anaemic heart failure patients with diabetes and chronic kidney disease. Eur J Heart Fail. 2015;17:1201–1207

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