A jornada dos inibidores de SGLT2: resumos dos principais estudos

Por Mardson Medeiros    /



A busca por drogas seguras para tratar diabetes mellitus (DM), em pacientes cardiopatas, tem nos ensinado bastante nos últimos anos.

No ano de 2007, o estudo PROactive 08 randomizou 5.238 pacientes com DM tipo 2 e doença cardiovascular (CV) pré-existente para uso de pioglitazona ou placebo. Mais pacientes com pioglitazona (5,7%) do que placebo (4,1%) tiveram um evento grave de insuficiência cardíaca (ICC) durante o estudo (P = 0,007).  No entanto, a mortalidade por doença cardíaca foi semelhante (25 de 2.605 [0,96%] para pioglitazona vs. 22 de 2.633 [0,84%] para placebo; P = 0,639). [1]

Figura 1. Estimativas de tempo Kaplan-Meier para insuficiência cardíaca grave. Hazard Ratio 1.41 [IC 95% 1,10–1,80]; P = 0.007), sugerindo piora deste desfecho no grupo pioglitazona, quando comparado com placebo.[1]


No mesmo ano, uma metanálise sugeriu que a rosiglitazona estava associada a um aumento significativo no risco de infarto do miocárdio (odds ratio de 1,43; intervalo de confiança 95% [IC], 1,03 to 1,98; P = 0.03). [2]

Em 2008, a preocupação com a segurança cardiovascular das glitazonas, agentes antidiabéticos populares, levou o FDA (Food and Drug Administration) nos Estados Unidos a emitir um Guia para a Indústria recomendando que os patrocinadores de agentes antidiabéticos novos ou recentemente aprovados deveriam “demonstrar que a terapia não resultaria em um aumento inaceitável no risco cardiovascular”. [3]

No ano de 2013, o ensaio clínico SAVOR-TIMI 53 randomizou 16.492 pacientes com DM tipo 2 que tinham histórico de doença CV, ou estavam em risco de eventos CV, para receber saxagliptina (um inibidor da dipeptidil peptidase 4, DPP-4) ou placebo, com acompanhamento mediano de 2,1 anos. O desfecho primário utilizado foi um composto de morte cardiovascular, infarto do miocárdio (IAM) ou acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi). Um evento de desfecho primário ocorreu em 613 pacientes no grupo saxagliptina e em 609 pacientes no grupo placebo (7,3% e 7,2%, respectivamente, de acordo com estimativas de 2 anos de Kaplan-Meier; hazard ratio com saxagliptina, 1,00; 95%  intervalo de confiança [IC], 0,89 a 1,12; P = 0,99 para superioridade; P<0,001 para não inferioridade). Contudo, mais pacientes no grupo saxagliptina do que no grupo placebo foram hospitalizados por insuficiência cardíaca (3,5% vs. 2,8%; taxa de risco, 1,27; IC 95%, 1,07 a 1,51; P = 0,007). Lembrando que se trata de desfecho secundário, devendo ser entendido como gerador de hipótese. [4]

Metanálise com os trabalhos publicados sobre os inibidores da DPP-4 sugeriu que o aumento de hospitalização por ICC não parece ser efeito de classe. [5]






Figura 2. Metanálise mostrou que o aumento do internamento por ICC ocorreu como desfecho secundário no SAVOR TIMI, todavia, este achado não se repetiu nos estudos EXAMINE (alogliptina), TECOS (sitagliptina) e CARMELINA (linagliptina). [5]

Os autores da metanálise concluíram que “podemos considerar que o efeito adverso inicial de hospitalização por ICC pode ser exclusivo da saxagliptina ou até mesmo um efeito surgido por um erro tipo 1 (ruído estatístico)”, decorrendo, na realidade, do acaso. [5]

Mas o alerta estava dado! Diante de possíveis resultados adversos de algumas drogas para diabetes em pacientes cardiopatas, tornou-se frequente estudar a segurança de novos medicamentos nesta população específica.

Neste contexto, no ano de 2015, foi publicado o EMPA-REG OUTCOME. Tratava-se de estudo de não-inferioridade da empaglifozina (um inibidor do cotransportador sódio-glicose 2: iSGLT2) contra placebo. O desenho do estudo causou estranheza, pois, a princípio, nos trabalhos de não inferioridade, compara-se uma droga nova contra uma outra já tradicional e “consagrada”, podendo a novata ser até “um pouco pior”, para ser empregada na prática clínica, com limite estabelecido previamente no protocolo do estudo. Exemplos clássicos de ensaios clínicos de não inferioridade são os estudos de warfarina versus anticoagulantes orais diretos. Contudo, o EMPA-REG comparou a empaglifozina contra o placebo. Este tipo de análise é mais comum em estudos de superioridade. De qualquer forma, para surpresa da comunidade científica, o desfecho composto primário de morte por causas CV, IAM não fatal ou AVC não fatal foi menor com empaglifozina, quando comparado com placebo. Foi a primeira vez que se demonstrou este resultado com esta classe de medicamentos. E mais, na análise de desfechos secundários, parecia haver redução de mortalidade e de internamento por ICC (vide tabela 1). [6] Apesar de esta observação secundária, naquele momento, ser apenas uma hipótese.

Surgia, assim, uma nova classe de medicamento com benefício cardiovascular.

Nos anos subsequentes vários trabalhos foram publicados com os inibidores da SGLT2. [7, 8]

Nas tabelas abaixo, há um resumo com as principais características e resultados de cada um destes estudos. Repare que o desfecho secundário redução de morte cardiovascular não se repetiu em todos os trabalhos, na verdade, apareceu na minoria. Contudo, a redução de internamento por insuficiência cardíaca foi bastante consistente. Como os iSGLT2 possuem efeito diurético, este achado é bem plausível (vide o mecanismo de ação no apêndice, depois das referências bibliográficas). [7-9] 

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Em relação ao desfecho renal, o estudo EMPA-REG OUTCOME foi o primeiro a sugerir uma redução significativa no desenvolvimento ou piora da função renal definida como o composto de uma duplicação do nível de creatinina sérica, aumento da albuminúria, início de terapia de substituição renal, ou morte por doença renal. [6]

Os efeitos benéficos da empagliflozina nos rins também foram observados em todo o espectro da função renal no estudo EMPEROR-Reduced [10].

O CREDENCE foi o primeiro grande ensaio clínico com iSGLT2 em que o desfecho primário foi a função renal. [11]  O desfecho primário renal composto foi reduzido (taxa de risco, 0,70; IC 95%, 0,59 a 0,82), assim como a albuminúria.
 
Uma meta-análise de quatro ensaios clínicos (EMPA-REG OUTCOME, CANVAS Program, CREDENCE e DECLARE-TIMI 58), envolvendo 38.723 pacientes com diabetes tipo 2, mostrou que, em comparação com os pacientes que receberam placebo, aqueles que tomaram inibidores de SGLT2 tiveram uma redução significativa no risco de progressão para diálise, transplante ou morte por doença renal (risco relativo, 0,67;  95% CI, 0,52 a 0,86). [12]


E o que dizem as diretrizes sobre o uso dos iSGLT2?

• Atualização da diretriz brasileira de ICC de 2021: [13]
  - Inibidores de SGLT2 (dapagliflozina ou empagliflozina) em pacientes com ICFEr (insuficiência cardíaca com FEVE reduzida) sintomáticos diabéticos ou não já com dose máxima otimizada tolerada de betabloqueador, antagonista da aldosterona, iECA/BRA ou INRA (inibidores da neprilisina e antagonista do receptor de angiotensina I) para reduzir desfechos cardiovasculares e progressão da disfunção renal (classe de recomendação I, nível de evidência A);
  - Inibidores de SGLT2 (canagliflozina, dapagliflozina ou empagliflozina) para prevenção de hospitalização por ICC em pacientes com diabetes tipo 2 e que apresentam fatores de risco cardiovasculares para aterosclerose ou doença cardiovascular aterosclerótica estabelecida (classe de recomendação I, nível de evidência A)
  - Inibidores de SGLT2 (dapagliflozina ou empagliflozina) como medicação antidiabética inicial associada ou não a metformina em pacientes com ICFEr (classe I, NE A)
  - Inibidores de SGLT2 (dapagliflozin ou empagliflozin) em pacientes com ICFEr para a prevenção da redução da função renal em pacientes com e sem diabetes, com TGF > 20 mL/min/1,73 m2 (classe IIa, NE A)


A diretriz conjunta de 2022 da Associação Americana de Diabetes (ADA) e Associação Europeia para o Estudo do Diabetes (EASD) já coloca os iSGLT2 como primeira opção nos pacientes com risco CV aumentando ou ICC estabelecida (fluxograma abaixo e link para a diretriz aqui). [14]


Um limitador importante para uso rotineiro desta classe de antidiabético é o custo, ainda bastante elevado.

No apêndice abaixo, depois das referências, há uma revisão conceitual sobre o mecanismo de ação e os principais efeitos adversos dos iSGLT2.


Referências bibliográficas:

1. Erdmann E, Charbonnel B, Wilcox RG, Skene AM, Massi-Benedetti M, Yates J, Tan M, Spanheimer R, Standl E, Dormandy JA; PROactive Investigators. Pioglitazone use and heart failure in patients with type 2 diabetes and preexisting cardiovascular disease: data from the PROactive study (PROactive 08). Diabetes Care. 2007 Nov;30(11):2773-8. doi: 10.2337/dc07-0717. Epub 2007 Jul 31. PMID: 17666462.

2. Nissen SE, Wolski K. Effect of rosiglitazone on the risk of myocardial infarction and death from cardiovascular causes.  N Engl J Med 2007;​356:​2457-71.

3. Hiatt WR, Kaul S, Smith RJ. The cardiovascular safety of diabetes drugs — in-sights from the rosiglitazone experience. N Engl J Med 2013;​369:​1285-7.

4. Spinar J, Smahelová A. SAVOR-TIMI 53 - Vysledky saxagliptinu a kardiovaskularni vysledky u pacientu s diabetes mellitus 2. typu [SAVOR TIMI 53 -  Saxagliptin and cardiovascular outcomes in patients with type 2 diabetes mellitus]. Vnitr Lek. 2013 Nov;59(11):1003-7. Czech. PMID: 24279445.

5. Singh AK, Singh R. Heart Failure Hospitalization with DPP-4 Inhibitors: A Systematic Review and Meta-analysis of Randomized Controlled Trials. Indian J Endocrinol Metab. 2019 Jan-Feb;23(1):128-133. doi: 10.4103/ijem.IJEM_613_18. PMID: 31016167; PMCID: PMC6446681.

6. Zinman B, Wanner C, Lachin JM, et al. Empagliflozin, Cardiovascular Outcomes, and Mortality in Type 2 Diabetes. N Engl J Med. 2015 Nov 26;373(22):2117-28. doi: 10.1056/NEJMoa1504720. Epub 2015 Sep 17. PMID: 26378978.

7. Braunwald E. Gliflozins in the Management of Cardiovascular Disease. N Engl J Med. 2022 May 26;386(21):2024-2034. doi: 10.1056/NEJMra2115011. PMID: 35613023.

8. Vaduganathan M, Docherty KF, Claggett BL, Jhund PS, de Boer RA, Hernandez AF, Inzucchi SE, Kosiborod MN, Lam CSP, Martinez F, Shah SJ, Desai AS, McMurray JJV, Solomon SD. SGLT-2 inhibitors in patients with heart failure: a comprehensive meta-analysis of five randomised controlled trials. Lancet. 2022 Sep 3;400(10354):757-767. doi: 10.1016/S0140-6736(22)01429-5. Epub 2022 Aug 27. PMID: 36041474.

9. Solomon SD, McMurray JJV, Claggett B, et al. DELIVER Trial Committee and Investigators. Dapagliflozin in Heart Failure with Mildly Reduced or Preserved Ejection Fraction. N Engl J Med. 2022 Sep 22;387(12):1089-1098. doi: 10.1056/NEJMoa2206286. Epub 2022 Aug 27. PMID: 36027570.

10. Packer M, Anker SD, Butler J, et al. EMPEROR-Reduced Trial Investigators. Cardiovascular and Renal Outcomes with Empagliflozin in Heart Failure. N Engl J Med. 2020 Oct 8;383(15):1413-1424. doi: 10.1056/NEJMoa2022190. Epub 2020 Aug 28. PMID: 32865377.

11. Perkovic V, Jardine MJ, Neal B, et al. CREDENCE Trial Investigators. Canagliflozin and Renal Outcomes in Type 2 Diabetes and Nephropathy. N Engl J Med. 2019 Jun 13;380(24):2295-2306. doi: 10.1056/NEJMoa1811744. Epub 2019 Apr 14. PMID: 30990260.

12. Neuen BL, Young T, Heerspink HJL,  et al. SGLT2 inhibitors for the prevention of kidney failure in patients with type 2 diabetes: a systematic review and meta-analysis. Lancet Diabetes Endocrinol 2019;​ 7:​845-54.

13. Marcondes-Braga FG, Moura LAZ, Issa VS, Vieira JL, Rohde LE, Simões MV, et al. Atualização de Tópicos Emergentes da Diretriz de Insuficiência Cardíaca – 2021. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(6):1174-1212

14. Davies MJ, Aroda VR, Collins BS, Gabbay RA, Green J, Maruthur NM, Rosas SE, Del Prato S, Mathieu C, Mingrone G, Rossing P, Tankova T, Tsapas A, Buse JB. Management of Hyperglycemia in Type 2 Diabetes, 2022. A Consensus Report by the American Diabetes Association (ADA) and the European Association for the Study of Diabetes (EASD). Diabetes Care. 2022 Sep 23:dci220034. doi: 10.2337/dci22-0034. Epub ahead of print. PMID: 36148880.

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• APÊNDICE: os inibidores da SGLT2

A reabsorção de glicose do filtrado glomerular é um processo ativo, que está ligado ao sódio e requer uma proteína carreadora, denominada cotransportadora sódio-glicose (SGLT).  Duas isoformas de SGLT foram descritas: SGLT1, que se localiza principalmente no intestino delgado, com pouco efeito no túbulo renal; e SGLT2, que foi objeto desta revisão.  O SGLT2 possui propriedades de baixa afinidade e alta capacidade e é encontrado quase que exclusivamente nas células epiteliais do túbulo renal proximal, onde é responsável por mais de 90% da reabsorção de glicose e 65% da reabsorção de sódio. Os inibidores da SGLT2 possuem, portanto, efeito diurético. Os efeitos adversos mais comuns dos inibidores de SGLT2 são as infecções genitais micóticas, que estão relacionadas à ação glicosúrica desses agentes e ocorrem mais frequentemente em mulheres do que em homens. Efeitos adversos menos comuns são infecções do trato urinário e pielonefrite.  A cetoacidose diabética, que é relativamente incomum, pode ocorrer, particularmente em pacientes idosos com depleção de volume. O distúrbio pode ser precipitado por uma doença aguda ou jejum e pode ser acompanhado por hipotensão grave. A cetoacidose diabética é caracterizada por um acúmulo de corpos cetônicos, principalmente ácido hidroxibutírico. Uma forma de cetoacidose em pacientes que recebem inibidores de SGLT2 é a cetoacidose euglicêmica, que não é acompanhada por níveis marcadamente elevados de glicose no sangue. Uma duplicação da incidência de amputações de membros inferiores e um aumento de fraturas ósseas foram observadas com canagliflozina no CANVAS Program. No entanto, essas complicações não foram observadas no estudo CREDENCE, que também estudou canagliflozina, e não foram relatadas  com outros inibidores de SGLT2. [7]




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