Diagnóstico da Síndrome do QT Longo Congênito: como selecionar os pacientes que merecem estudo genético? O escore de Schwartz

Por Mardson Medeiros  /

Figura 1. Intervalo QT e o RR

Intervalo QT (QT) é a medida do início do QRS ao término da onda T, portanto, representa a duração total da atividade elétrica ventricular. Como o QT é variável de acordo com a frequência cardíaca (FC), habitualmente é corrigido (QTc) pela fórmula de Bazzet, onde QTc = QT dividido pela raiz quadrada do RR [1].

A fórmula de Bazzet, amplamente utilizada para o cálculo do QTc, apresenta, entretanto, limitações para frequências cardíacas menores que 60 bpm ou superiores a 90 bpm, devendo-se utilizar fórmulas lineares, como as de Framingham e Hodges [1].

Os valores para o QTc variam com o sexo e são aceitos como normais até o máximo de 450 ms para homens e 470 ms para mulheres. Para crianças, o limite superior do normal é de 460  ms, sendo em contrapartida considerado como QT curto os valores menores que 340 ms [1].

A síndrome do QT longo (SQTL) é um distúrbio da repolarização miocárdica ventricular, caracterizada por um intervalo QT prolongado no eletrocardiograma (ECG), que pode levar a arritmias ventriculares sintomáticas e aumento do risco de morte súbita cardíaca (MSC) [2].  Os sintomas primários em pacientes com SQTL incluem síncope, convulsões, parada cardíaca e MSC. A SQTL está associada a um risco aumentado de uma arritmia cardíaca característica com risco de vida, conhecida como torsades de pointes ou "torção das pontas" [3].

A SQTL pode ser congênita ou adquirida [2].  Variantes patogênicas de até 17 genes foram identificadas até agora em pacientes com SQTL congênito;  os três principais subtipos genéticos são designados como LQT1, LQT2 e LQT3, enquanto os genes de suscetibilidade a SQTL menores são designados por seu substrato genético (por exemplo, CALM1-SQTL) [4].

Uma análise clínica e genética de 45.000 recém-nascidos sugeriu que a prevalência esteja na faixa de 1:2.000-2.500 [5].

LQT1, LQT2 e LQT3 são responsáveis ​​por aproximadamente 75 a 80 por cento dos casos de SQTL congênito, sendo LQT1 responsável por 45% dos casos, LQT2 por 25 a 40% e LQT3 por 5 a 10%. [6]

Os gatilhos mais frequentes para desencadear sintomas na SQTL congênito são [7]:

-  LQT1: exercício físico (75%), estresse emocional (15%) e no repouso ou dormindo (10%);

- Na LQT2: estresse emocional (37%) ou repouso (63%);

- Na LQT3: 80% no repouso ou dormindo, 15% sob estresse emocional e 15% no esforço físico.

SQTL adquirido geralmente é causada por potássio baixo, hipomagnesemia ou por alguns medicamentos (e a lista é grande). Outras causas menos frequentes são hipocalcemia e hipotireoidismo [8].

Alguns exemplos de medicamentos que podem alargar o QT: amiodarona, sotalol, propafenona, cloroquina, hidroxicloroquina, propofol, levofloxacina, azitromicina, clorpromazina, haloperidol IV, escitalopram, entre outros [3].

As manifestações clínicas da SQTL são altamente variáveis.  A maioria dos pacientes com SQTL congênito nunca terá um sintoma, enquanto os pacientes sintomáticos (antes do diagnóstico e início de terapias eficazes) podem apresentar síncope arrítmica com ou sem convulsões generalizadas ou parada cardíaca [2].  Pacientes sem sintomas geralmente procuram atendimento médico porque têm um membro da família afetado ou um QTc prolongado é identificado em um ECG obtido por algum outro motivo.

Muitos pacientes com SQTL continuam sendo diagnosticados erroneamente como tendo epilepsia e tratados incorretamente com medicamentos antiepilépticos. Raramente, o evento sentinela pode ser uma MSC [2]. 

Na investigação etiológica, primeiramente precisa-se afastar as causas secundárias (adquiridas).

Se não houver nenhuma causa externa que possa prolongar o intervalo QT, ou se a possível causa foi retirada e o QT continua alongado, deve-se pensar em causa congênita.

A estratégia diagnóstica inicial inclui avaliação do evento apresentado (síncope, convulsões, parada cardíaca súbita ou MSC), obtenção de uma história familiar cuidadosa, avaliação cuidadosa do QTc (medida preferencialmente manual, nas derivações DII e V5), exclusão de causas secundárias de prolongamento do intervalo QT, monitoramento ambulatorial de ECG (com  ECG de 12 derivações, se possível), teste de esforço e cálculo do escore diagnóstico da SQTL (o "escore de Schwartz").

O QTc obtido por computador deve sempre ser confirmado ou corrigido manualmente.  Como o QTc varia em resposta a fatores fisiológicos e drogas, o teste de ECG em série é necessário com frequência.

Além do QT longo, outras alterações podem surgir no ECG, incluindo desde ondas T normais (alargadas ou apiculadas), até alterações de repolarização, com ondas T negativas, bifásicas (plus-minus) ou com entalhes (notched) [9,10].

Figura 2. Ondas T anormais em pacientes com QT longo: à esquerda, ondas bifásicas (plus-minus); à direita, ondas T com entalhes (notched) [9]

Um sistema de pontuação não genético ponderado para o diagnóstico da SQTL congênito, também chamado de "escore de Schwartz", incorpora o QTc medido e outros fatores clínicos e históricos [11]. Com isto, consegue-se estimar a probabilidade pré-teste de um paciente ser portador de SQTL congênito, selecionando melhor os candidatos para realizar um teste genético.  O algoritmo consiste de um sistema de pontuação da seguinte forma:

a) achados de ECG (na ausência de medicações ou desordens externas que afetem o QT)

- QTc ≥ 480 ms (3 pontos)

- QTc de 460 a 470 ms (2 pontos)

- QTc de 450 a 459 ms, em homens (1 ponto)

- QTc (pela fórmula de Bazett) no 4• minuto da recuperação do teste ergométrico ≥ 480 ms (1 ponto)

- Torsades de points (2 pontos, critério mutuamente exclusivo)

- Onda T alternante (1 ponto)

- Onda T com entalhe (notched) em pelo menos três derivações (1 ponto)

- Baixa frequência cardíaca para idade (0,5 ponto)

b) história clínica

- Síncope (critérios mutuamente exclusivos): com estresse (2 pontos) ou sem estresse (1 ponto)

- Surdez congênita (0,5 ponto)

c) História familiar

- SQTL definido em membro da família (1 ponto)*

- MSC inexplicada antes dos 30 anos de idade em parente de primeiro grau (0,5 ponto)*

*O mesmo membro da família não pode ser contado duas vezes, nos dois critérios


Resultado do escore de Schwartz:

≤ 1 ponto = baixa probabilidade de SQTL congênito

1,5 a 3 pontos = probabilidade intermediária de SQTL

≥ 3,5 pontos = alta probabilidade de SQTL


Quando um paciente satisfaz o escore de Schwartz de alta probabilidade (ou seja, ≥3,5 pontos), a probabilidade de um teste genético para SQTL ser positivo é de aproximadamente 80%. [11] Um escore de Schwartz com a probabilidade intermediária não equivale a um diagnóstico de SQTL congênita, mas pode justificar uma investigação adicional (ou seja, teste genético do paciente e teste de ECG de seus parentes). Neste cenário, a probabilidade de SQTL congênito é de aproximadamente 5 a 20% [11]. Em tal situação, se o teste genético for realizado e vier com resultado negativo, o paciente que possuía uma "probabilidade intermediária" pelo escore de Schwartz, poderia ser reclassificado como não portador da SQTL congênito. É importante ressaltar que, se a pontuação de Schwartz for baixa (≤ 1 ponto), o teste genético não deve ser realizado.  Não rotule tais indivíduos como SQTL limítrofe ou possível SQTL.  Em vez disso, na maioria das circunstâncias, esses pacientes devem ser reclassificados como normais e dispensados ​​do acompanhamento [12].

Por fim, importante lembrar que o escore de Schwartz não é adequado para screening em membros da família de um paciente afetado [12].

Entre as famílias com SQTL geneticamente comprovada, é inaceitável dizer aos membros da família/parentes que eles têm ou não SQTL com base apenas em seu ECG.  Apenas um resultado de teste genético variante específico negativo e um ECG normal nesse familiar podem levar à conclusão de que o familiar não tem SQTL, podendo ser dispensado do acompanhamento [12].



Referências bibliográficas:

1. Pastore CA, Pinho JA, Pinho C, Samesima N, Pereira-Filho HG, Kruse JCL, et al. III Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Análise e Emissão de Laudos Eletrocardiográficos. Arq Bras Cardiol 2016; 106(4Supl.1):1-23

2. Schwartz PJ, Ackerman MJ. The long QT syndrome: a transatlantic clinical approach to diagnosis and therapy. Eur Heart J 2013; 34:3109.

3. Roden DM. Drug-induced prolongation of the QT interval. N Engl J Med 2004; 350:1013.

4. Schwartz PJ, Ackerman MJ, George AL Jr, Wilde AAM. Impact of genetics on the clinical management of channelopathies. J Am Coll Cardiol 2013; 62:169.

5. Schwartz PJ, Stramba-Badiale M, Crotti L, Pedrazzini M, Besana A, Bosi G, Gabbarini F, Goulene K, Insolia R, Mannarino S, Mosca F, Nespoli L, Rimini A, Rosati E, Salice P, Spazzolini CPrevalence of the congenital long-QT syndrome. Circulation2009120:1761–1767

6. Ackerman MJ, Priori SG, Willems S, Berul C, Brugada R, Calkins H, Camm AJ, Ellinor PT, Gollob M, Hamilton R, Hershberger RE, Judge DP, Le Marec H, McKenna WJ, Schulze-Bahr E, Semsarian C, Towbin JA, Watkins H, Wilde A, Wolpert C, Zipes DP. HRS/EHRA expert consensus statement on the state of genetic testing for the channelopathies and cardiomyopathies this document was developed as a partnership between the Heart Rhythm Society (HRS) and the European Heart Rhythm Association (EHRA). Heart Rhythm. 2011 Aug;8(8):1308-39. doi: 10.1016/j.hrthm.2011.05.020. PMID: 21787999.

7. Schwartz PJ, Priori SG, Spazzolini C, et al. Genotype-phenotype correlation in the long-QT syndrome: gene-specific triggers for life-threatening arrhythmias. Circulation 2001; 103:89.

8. Kallergis EM, Goudis CA, Simantirakis EN, Kochiadakis GE, Vardas PE. Mechanisms, risk factors, and management of acquired long QT syndrome: a comprehensive review. ScientificWorldJournal. 2012;2012:212178. doi: 10.1100/2012/212178. Epub 2012 Apr 19. PMID: 22593664; PMCID: PMC3347892.

9. Malfatto G, Beria G, Sala S, et al. Quantitative analysis of T wave abnormalities and their prognostic implications in the idiopathic long QT syndrome. J Am Coll Cardiol 1994;23:296.

10. Zhang L, Timothy KW, Vincent GM, et al. Spectrum of ST-T-wave patterns and repolarization parameters in congenital long-QT syndrome: ECG findings identify genotypes. Circulation 2000; 102:2849.

11. Schwartz PJ, Crotti L. QTc behavior during exercise and genetic testing for the long-QT syndrome. Circulation 2011; 124:2181.

12. Schwartz PJ, Ackerman MJ. Congenital Long QT syndrome: Diagnosis. UpToDate. Última atualização em maio de 2022. Acessado em 21 de junho de 2022.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sobrevivente de parada cardiorrespiratória por qualquer ritmo, quando encaminhar para o cateterismo cardíaco? Parte 2: TOMAHAWK trial

12 eletrocardiogramas (ECG) com supradesnivelamento do segmento ST (SST) e somente 3 são de origem isquêmica: como identificar SST isquêmico pelo ECG?

Qual a melhor técnica de fixação do marca-passo transvenoso? FIX-IT trial