12 eletrocardiogramas (ECG) com supradesnivelamento do segmento ST (SST) e somente 3 são de origem isquêmica: como identificar SST isquêmico pelo ECG?

Por Mardson Medeiros / atualizado: 15 de julho de 2022



Uma das preocupações ao atender um paciente com dor torácica é identificar se o supradesnivelamento de ST (SST) do eletrocardiograma (ECG) é sugestivo de oclusão coronariana aguda ou não, pois se trata de condição clínica que, se não for abordada rapidamente, pode levar a desfechos desfavoráveis, incluindo morte. 1

O ECG deve ser realizado em até 10 minutos da chegada do paciente ao pronto socorro e, se houver necessidade, deveria ser repetido a cada 15 a 30 min, nas primeiras 1 a 2 horas, quando o ECG inicial não for diagnóstico e principalmente se o paciente persistir sintomático. Detectado um SST de etiologia isquêmica, o tempo máximo ideal para abrir a artéria seria de até 12 h em relação ao início da dor torácica e quanto antes melhor. 1,2

Estudo original ainda na era dos trombolíticos, com 17.187 pacientes, mostrou que abrir a artéria ocluída nas 3 primeiras horas do início da dor teria o potencial de reduzir a mortalidade em 31%, de 3 a 6 horas em 22% e de 6 a 24h em 14%. 3

O sinal eletrocardiográfico de oclusão arterial total é o supradesnivelamento do segmento ST isquêmico, todavia, existem algumas condições que podem gerar elevação do segmento ST com características diferentes, não isquêmicas

Figura 1. O Ponto J e o Segmento ST


Em homens saudáveis ​​com menos de 40 anos, a elevação do ponto J (região de encontro entre o final do QRS e o início do segmento ST) de até 2,5 mm nas derivações V2 ou V3 pode ser considerada normal, diminuindo com o aumento da idade. Nos homens com mais de 40 anos, o limite da normalidade é de 2 mm nestas duas derivações. Nas mulheres, independentemente da idade, V2 e V3 com elevação do ponto J em até 1,5 mm pode ser considerada dentro da normalidade. 2  Assim, como o conceito de SST isquêmico exige pelo menos duas derivações contíguas com elevação de ST ≥ 1 mm, no caso de V2 e V3 o supra precisaria ser ≥ 2 mm (para homens ≥ 40 anos de idade) e ≥ 1,5 mm (para mulheres). Por exemplo, ≥ 2 mm de supradesnivelamento do segmento ST na derivação V2 e ≥ 1 mm na derivação V1 atenderiam aos critérios de duas derivações contíguas anormais em um homem ≥ 40 anos.  No entanto, ≥ 1 mm e < 2 mm de supradesnivelamento do segmento ST, observados apenas nas derivações V2–V3 em homens (ou < 1,5 mm em mulheres), podem representar um achado normal. 2



Figura 2. ECG normal com elevação do ponto J em 1 mm, na derivação V2. Fonte: arquivo pessoal


Um trabalho clássico, publicado no New England Journal of Medicine (NEJM), fez uma revisão sobre os principais tipos de supradesnivelamento do segmento ST, incluindo outras condições que não o infarto do miocárdio (vide figura 3). 4

Figura 3. Destes sete ECGs com elevação do segmento ST, somente dois são isquêmicos. Os outros possuem etiologias diferentes4 
Tente identificar os dois ECGs com SST de origem isquêmica e, só depois, leia o texto abaixo com as explicações.


O primeiro ECG é de um paciente com sinais sobrecarga ventricular esquerda (SVE). Nas precordiais direitas (V1 a V3), é comum haver elevação do ponto J em função da SVE. Nas precordiais esquerdas, principalmente em V5-V6, pode ocorrer infradesnivelamento de ST com ondas T negativas e assimétricas, o chamado padrão “strain”. Os critérios para diagnosticar SVE pelo ECG estão descritos abaixo, depois das referências bibliográficas, no apêndice.

Figura 4. ECG com sinais de SVE (e elevação característica de ST, côncava, nas precordiais direitas) e o padrão “strain” (infra de ST com ondas Ts negativas assimétricas em V5-V6). Este ECG pode ser encontrado, por exemplo, em um paciente com as coronárias normais, mas portador de HAS (hipertensão arterial sistêmica), assintomático, durante uma consulta ambulatorial. 5

O segundo traçado da figura 3 representa um bloqueio de ramo esquerdo (BRE). Nesta situação, também ocorrerá elevação de ST nas precordiais direitas e infra de ST com ondas Ts negativas assimétricas nas precordiais esquerdas, semelhante ao encontrado no ECG com SVE. A diferença, contudo, seria um QRS alargado no BRE (≥ 120 ms, ou seja, ≥ a 3 quadrados pequenos). Há também predomínio de onda S em V1 (S > R). Outras características do BRE que podem estar presentes são: ausência de “q” em DI, aVL, V5 e V6; R com entalhe em DI, aVL, V5 e V6. Nas derivações em que o QRS é negativo, as ondas T são positivas e, geralmente, apresentam elevação de ST. Nas derivações em que o QRS é positivo, as ondas T são negativas e, geralmente, apresentam infradesnivelamento de ST.

Figura 5. ECG com padrão de BRE: note QRS alargado com 120 ms (3 quadrados pequenos) e elevação do segmento ST de V1 a V3 com a parte côncava voltada para cima (esse é o comportamento padrão do segmento ST na presença de BRE e não significa, necessariamente, infarto do miocárdio). Fonte: arquivo pessoal

Existe uma situação especial em que, diante de um paciente com dor torácica típica e BRE, deve-se considerar como provável infarto agudo do miocárdio (IAM), com lesão coronariana crítica, devendo-se encaminhar o paciente imediatamente para sala de hemodinâmica: isto ocorre quando o critério de Barcelona está positivo.

O algoritmo de BARCELONA é considerado positivo na presença de pelo menos 1 dos seguintes critérios:


1. Desvio concordante do ST ≥ 1 mm em qualquer derivação, sendo:

    a) Supra de ST concordante com o QRS e ≥ 1 mm, em qualquer derivação;

   b) Depressão de ST concordante com o QRS e  ≥ 1 mm, em qualquer derivação.


2. Desvio de ST ≥ 1 mm, discordante do QRS, em qualquer derivação, desde que o máximo R ou S tenha voltagem ≤ 6 mm (0,6 mV).

O algoritmo de Barcelona apresentou alta sensibilidade (93%) e alta especificidade (94%) para o diagnóstico de IAM na presença de BRE, com área abaixo da curva ROC de 0,93, sendo superior ao escore de Sgarbossa e Sgarbossa modificado por Smith (p < 0,01). 6

Figura 6. Desvio de ST ≥ 1 mm, discordante do QRS, em aVR e V6, com voltagem do QRS ≤ 6 mm (0,6 mV): critério de Barcelona positivo. 6


Figura 7. Critério de Sgarbossada esquerda para direita: a) supra de ST concordante com o QRS (5 pontos), b) infra de ST concordante com o QRS (3 pontos), c) supra de ST discordante com QRS e  5 mm (2 pontos). 7

O critério de Sgarbossa com pontuação ≥ 3 tem especificidade de 90%, contudo, baixa sensibilidade (33%). 8  O item mais problemático e com maior probabilidade de falso positivo em Sgarbossa é o desnivelamento de ST discordante ≥ 5 mm, pois QRS de grande amplitude pode gerar esta alteração de ST sem necessariamente representar isquemia. Este “ponto fraco” no critério de Sgarbossa foi corrigido no algoritmo de Barcelona, que exige QRS de, no máximo, 6 mm de amplitude para considerar desnivelamento discordante.

O terceiro traçado da figura 3 é de um paciente com pericardite aguda. Repare o SST difuso, tanto nas precordiais quanto na derivação periférica (DII). É possível observar também infra de PR em DII, característico da pericardite.

Figura 8. Paciente com dor torácica ventilatório-dependente, apresentando SST tanto em precordiais como em DIII e aVF, com a concavidade voltada para cima, sugestivo de pericardite. Também é possível observar infradesnivelamento de PR. Fonte: Arquivo pessoal

Figura 9. Ecocardiograma do mesmo paciente da figura 8, onde se observa um pequeno derrame pericárdico e um pericárdio inflamado, brilhando. Fonte: arquivo pessoal


Vídeo 1. Mesmo paciente da figura 9, onde se vê pequeno derrame pericárdico e o pericárdio hiperecogênico. Fonte: arquivo pessoal


No quarto traçado da figura 3, chamam atenção as ondas T apiculadas e “em tenda”, ondas P ausentes (mas poderiam estar achatadas também), além do QRS “sinusoide” em V1 e V2. Estes achados são típicos de hiperpotassemia. Trata-se de uma elevação do segmento ST de origem não isquêmica. O tratamento, neste caso, baseia-se na correção dos níveis de potássio.

Os achados eletrocardiográficos vão depender do grau de hiperpotassemia:

- Leve (< 6 mEq/ L): ondas T apiculadas, simétricas e de pico estreito (superiores a amplitude de R); 

- Moderada (6-7 mEq / L): ondas P alargadas e achatadas (podendo desaparecer), enquanto o intervalo PR prolonga-se;

- Moderada a Grave (7-8 mEq / L): alargamento progressivo do complexo QRS. 

- Grave (> 8 mEq / L): a metade do QRS se funde com a onda T, resultando em uma "onda senoide" (ritmo pré-terminal), havendo risco iminente de assistolia, fibrilação ventricular, taquicardia ventricular (TV) com pulso ou sem pulso.

No quinto ECG da figura 3, finalmente temos o primeiro caso de SST isquêmico! Repare como o QRS é estreito (não há BRE) e com amplitude normal (não há SVE). É possível ver a onda P e não há aspecto senoide. O segmento ST está elevado e com a convexidade voltada para cima (“carinha triste”), diferentemente do SST do BRE e da SVE, cuja concavidade é que fica virada para cima (“carinha feliz”).

Figura 10. O primeiro ECG apresenta uma elevação de ST não isquêmica, com a concavidade voltada para cima, típica da SVE (🙂). O segundo ECG é de um paciente com SST isquêmico, com a convexidade para cima (😞).

O sexto traçado da figura 3 representa o segundo caso de infarto do miocárdio com SST e serve para lembrar que o bloqueio de ramo direito (BRD) não atrapalha a interpretação do SST de origem isquêmica, diferentemente do BRE, onde temos de aplicar os critérios de Barcelona. Lembrando que o bloqueio de ramo direito típico é caracterizado por QRS alargado (≥ 120 ms), com predomínio de onda R em V1 (R > S).

O sétimo e último traçado da figura 3 também é de origem não isquêmica e está presente na síndrome de Brugada. Trata-se de uma doença genética autossômica dominante, que modifica o funcionamento dos canais de sódio e está associada com síncope e morte súbita por arritmias ventriculares em pacientes com o coração estruturalmente normal. 9 No padrão de Brugada tipo 1, conhecido como curvado (coved, do inglês), em “escorregador” ou em “barbatana de tubarão”, há elevação do segmento ST em cúpula  ≥ 2 mm, em pelo menos duas derivações precordiais direitas (V1, V2 ou V3), seguida por um onda T negativa. 10 No Brugada tipo 2, há uma elevação de ST em sela  > 2 mm, seguida de onda T positiva ou bifásica. 10  O tipo 3 é semelhante ao 2, mas com ponto J elevado < 1 mm. Atualmente, existe uma tendência em considerar os padrões 2 e 3 como um só. O padrão de Brugada pode ser transitório, ou seja, surgir e desaparecer do ECG espontaneamente ou de acordo com alguns gatilhos, como por exemplo: febre, bradicardia, exercício, manobra vagal, cocaína, álcool, propranolol, antidepressivos tricíclicos e antiarrítmicos. 10

Figura 11. Os padrões de Brugada tipo 1, 2 e 3, podem surgir ou desaparecer em ECGs seriados de um mesmo paciente. 10


Figura 12. Paciente com febre, apresentando padrão de Brugada tipo 1, com aspecto de “barbatana de tubarão” em V1-V2.  10


Figura 13. Mesmo paciente da figura 12, após resolução da febre: mudou para padrão de Brugada tipo 3, em “sela de cavalo” em V1 e V2. 10


Na revisão do NEJM, são apresentados mais três traçados de ECG com SST de origem não isquêmica, sendo dois deles considerados variantes do normal. 4

Figura 14. De cima para baixo: o traçado 1 é de um ECG normal, com elevação do ponto J em V2-V3 de até 2 mm (aspecto côncavo do ST, “carinha feliz”); o traçado 2 representa um caso de repolarização precoce, com notching em V4 e slurring em V5-V6 (vide explicação abaixo); o traçado 3 mostra uma variante do normal, sendo caracterizada pela inversão terminal da onda T, com intervalo QT curto e o segmento ST curvado. Os traçados 2 e 3 são considerados variantes do normal. 4

O padrão de repolarização precoce (REP) é uma variante comum do ECG, caracterizada pela elevação do ponto J, manifestada como slurring terminal do QRS (a transição do segmento QRS para o segmento ST) ou notching (uma deflexão positiva inscrita no complexo QRS terminal), com supradesnivelamento côncavo do segmento ST e ondas T proeminentes em pelo menos duas derivações contíguas. 11

Figura 15. Repolarização precoce12, caracterizada por:
a) elevação do ponto J ≥ 1 mm (geralmente presente em pelo menos duas derivações contíguas, excluindo-se V1-V3);
b) presença de onda J de Osborn ou entalhe no final do QRS (também chamado de notching);
c) concavidade superior do segmento ST (“carinha feliz”);
d) slurring (empastamento do QRS na transição com o segmento ST, sem a presença da onda J);
e) ondas T apiculadas.


Antzelevitch et al.13 propõem dividir o padrão de repolarização precoce em três subtipos (quatro, se for incluída a síndrome de Brugada):

  • Tipo 1: padrão de repolarização precoce em derivações precordiais laterais.
  • Tipo 2: padrão de repolarização precoce em derivações inferiores ou inferolaterais.
  • Tipo 3: padrão de repolarização precoce generalizado, em derivações inferiores, laterais e precordiais direitas.
  • Tipo 4: eletrocardiograma de síndrome de Brugada.

O Tipo 1 é frequente em pessoas saudáveis e em atletas masculinos, está associado a baixo risco arrítmico.

O Tipo 2 está associado a um risco arrítmico moderado, este tipo foi encontrado em pacientes depois de uma fibrilação ventricular idiopática, embora possa ser encontrado em jovens.

O Tipo 3 é o tipo de maior risco de apresentar arritmias ventriculares e pode estar associado a tempestades de fibrilação ventricular13

Contudo, ainda não existem dados que sustentem uma associação entre repolarização inferior precoce e morte cardíaca súbita em atletas. 14


Outra situação em que é possível encontrar onda J de Osborn é na hipotermia (vide figura 16).

Figura 16. ECG de um paciente internado na unidade de terapia intensiva, cuja temperatura axilar chegou a 34,3•C. Observe as ondas T de Osborn nas derivações inferiores e de V4-V6 e que o SST é côncavo (“carinha feliz”). Fonte: imagem gentilmente cedida pelo prof. Dr. Ubiracé Elihimas.


Figura 17. ECG do mesmo paciente da figura 16, após realizar aquecimento. Repare que as ondas J de Osborn desapareceram. As linhas mais espessas em DI/aVL/DIII são decorrentes de artefatos (interferência)Fonte: imagem gentilmente cedida pelo prof. Dr. Ubiracé Elihimas.

Figura 18. As ondas J de Osborn e o SST côncavo da figura 16 foram causados pela hipotermia. Houve reversão (figura 17), após aquecimento do paciente. Fonte: imagem gentilmente cedida pelo prof. Dr. Ubiracé Elihimas.


Existem algumas condições especiais em que o SST isquêmico pode estar “oculto”. São situações desafiadoras e que requerem atenção extra: a) no infarto agudo do miocárdio (IAM) isolado do ventrículo direito (VD); 15  b) no IAM com oclusão da coronária circunflexa (ACx); 16 c) quando ocorre o padrão De Winter, sugerindo oclusão da artéria descendente anterior (ADA); 17  d) padrão de Aslanger. 18

Nas figuras 19 e 20, observam-se detalhes do padrão eletrocardiográfico na presença de IAM isolado do VD.

Figura 19. ECG com SST em V1 e aVR (SST de V1 > SST de aVR) e infradesnivelamento de ST difuso (V3-V6 e DI-aVL). Nesta situação, é muito importante registrar também VR3, VR4 e V5R, pois pode corresponder a um IAM isolado do VD. Observe que não há SST de DII/DIII/aVF, comum no IAM de parede inferior. Continua na figura 20. 15


Figura 20. ECG do mesmo paciente da figura 19, com resgistro das derivações V3R, V4R e V5R, com evidência de SST isquêmico. Ecocardiograma mostrou hipocontratilidade severa do VD, com fração de ejeção e contratilidade segmentar do ventrículo esquerdo (VE) preservadas. Angiografia evidenciou artéria coronária direita (ACD) não dominante ocluída. Foi realizada angioplastia com implante de stent na ACD e o paciente recebeu alta 7 dias depois da admissão. As setas pretas apontam para extra-sístoles. 15

Deve-se lembrar também de registrar as derivações V3R, V4R e V5R no IAM com SST de parede inferior. 2

Um infradesnivelamento de ST em 6 ou mais derivações com SST em aVR e/ou V1, mas com SST de aVR > SST de V1, sugere doença coronariana (DAC) multiarterial ou lesão importante do tronco da coronária esquerda. 2,15  (Diferenciando IAM isolado de VD versus DAC multiarterial: veja aqui).

A evidência de ECG com isquemia miocárdica na distribuição de uma artéria circunflexa esquerda (ACx) é frequentemente negligenciada. A depressão isolada do segmento ST ≥ 0,5 mm nas derivações V1–V3 pode indicar oclusão circunflexa esquerda e pode ser melhor capturada usando derivações posteriores no quinto espaço intercostal (V7 na linha axilar posterior esquerda, V8 na linha média escapular esquerda e V9 na borda paraespinhal esquerda).  O registro dessas derivações é fortemente recomendado em pacientes com alta suspeita clínica de oclusão circunflexa aguda (por exemplo, ECG inicial não diagnóstico ou depressão do segmento ST nas derivações V1–V3). 16  Um ponto de corte de 0,5 mm de elevação ST é recomendado nas derivações V7–V9, mas a especificidade aumenta se um ponto de corte ≥ 1 mm de elevação ST for encontrado. 16


De Winter et al identificaram um sinal eletrocardiográfico de oclusão da ADA. 17  Em vez da elevação do segmento ST, foi observada uma depressão do segmento ST de 1 a 3 mm no ponto J nas derivações V1 a V6 que continuava em ondas T simétricas altas e positivas.  Os complexos QRS geralmente não eram alargados ou eram apenas ligeiramente alargados, e em alguns havia uma perda da progressão da onda R precordial.  Na maioria dos pacientes havia uma elevação de ST de 1 a 2 mm na derivação aVR (veja a figura 21).  Esse padrão característico de ECG foi identificado em 30 de 1.532 pacientes com infarto do miocárdio anterior (2,0%). 17  Embora ondas T simétricas altas tenham sido reconhecidas como uma característica transitória precoce que muda para elevação de ST evidente nas derivações precordiais, nesses pacientes esse padrão era estático, persistindo desde o momento do primeiro ECG até a realização do ECG pré-procedimento, sendo obtida evidência angiográfica de uma ADA ocluída (ou seja, 30 a 50 minutos entre o ECG e a angiografia).  Os ECGs com este padrão foram registrados em média 1,5 horas após o início dos sintomas, ou seja, bem precoce. 17

Figura 21. ECGs de 6 pacientes com o padrão De Winter: os registros mostram infradesnivelamento do segmento ST precordial no ponto J, seguido por ondas T positivas e pontiagudas.  Além disso, a derivação aVR mostra discreta elevação do segmento ST na maioria dos casos.  Todos os seis pacientes foram submetidos à intervenção coronária percutânea primária, devido a uma oclusão da ADA proximal. 17

Aslanger et al reconheceram um padrão que sugeria oclusão coronariana aguda, consistindo nos seguintes achados: (1) qualquer elevação de ST (EST) em DIII, mas não em outras derivações inferiores; (2) infradesnivelamento de ST (infra ST) em qualquer uma das derivações V4 a V6 (mas não em V2) com uma onda T positiva ou terminalmente positiva; (3) ST na derivação V1 maior que ST em V2. 18

Em estudo original, Aslanger e colaboradores observaram que 6,3% dos pacientes rotulados, incialmente, com infarto agudo do miocárdio (IAM) sem elevação do segmento ST (SEST), apresentavam este padrão eletrocardiográfico, sendo que 54% destes pacientes estavam, na verdade, com alguma oclusão coronariana aguda, principalmente da ACx, com IAM inferior e frequentemente com lesões críticas, mas estáveis, em outras coronárias. 18  Leia um resumo sobre o trabalho de Aslanger et al, clicando aqui.

Figura 22. ECG com o padrão de Aslanger: (1) EST em DIII, mas não em qualquer outra derivação inferior, (2) depressão de ST em qualquer uma das derivações V4 a V6 (mas não em V2) com uma onda T positiva (ou pelo menos terminalmente positiva), (3) ST a derivação V1 maior que ST em V2


Vamos recapitular todos os padrões eletrocardiográficos vistos até agora, tanto os de origem não isquêmica (NI), quanto os isquêmicos (I).

1. SST côncavo em V2-V3, até 2 mm em homens ou 1,5 mm em mulheres (NI);

2. SVE (NI): SST côncavo (“carinha feliz”) em precordiais direitas (geralmente de V1 a V3);

3. BRE (NI): QRS alargado ( ≥ 120 ms), com S > R em V1,  SST côncavo (“carinha feliz”) em precordiais direitas (geralmente de V1 a V3) e com infradesnivelamento de ST em V5-V6 e DI-aVL. Todavia, atenção para o critério de Barcelona, pois, se presente, deve-se encaminhar para angiografia imediatamente;

4. Pericardite (NI): SST difuso com infra de PR

5. Hiperpotassemia (NI): ondas P achatadas ou ausentes, ondas T apiculadas e “em tenda”, QRS de aspecto senoide;

6. SST convexo (I), “carinha triste”, em ECG sem sinais de SVE, nem de BRE. Típico SST isquêmico. A coronária deve estar ocluída e precisa ser desobstruída em até 12 horas do início da dor;

7. SST convexo (I) em paciente com BRD. Necessita desobstruir artéria coronária em até 12 horas do início da dor;

8. Padrão de Brugada (NI), o risco neste caso é de síncope e morte súbita por arritmia ventricular, em coração estruturalmente normal;

9. Repolarização precoce (NI), considerada uma variante do normal. Procurar no ECG o padrão de notching (onda J de Osborn) e slurring;

10. Outra variante do normal (NI), caracterizada pela inversão terminal da onda T, com intervalo QT curto e o segmento ST curvado (reveja traçado 3, da figura 14);

11. Ondas J de Osborn (NI), em função da hipotermia. O tratamento consiste em aquecer o paciente;

12. SST em V1 e aVR (I), com SST de V1 > SST aVR, além de infradesnivelamento difuso de ST em pelo menos 6 derivações. Lembrar de pedir registro eletrocardiográfico de V3R, V4R e V5R, pois pode se tratar de IAM isolado do VD, em paciente com coronária direita não dominante;

13. Infra de ST de V1 a V3 que pode corresponder a oclusão da ACx, sendo obrigatório o registro das derivações V7, V8 e V9, onde poderia ser observado o SST (I). Encaminhar o paciente para desobstrução da coronária em até 12 h do início da dor torácica;

14. Padrão De Winter (I), onde o paciente chega ao pronto socorro em até 1,5 h do início da dor torácica e ainda não há SST nas precordiais. Padrão De Winter é sinal de oclusão da ADA proximal e o paciente precisa ir imediatamente para intervenção coronariana.

15. Padrão de Aslanger (I), que sugere IAM inferior. Mais da metade dos pacientes apresentavam oclusão coronariana aguda. Idealmente, estes pacientes necessitam de intervenção coronariana em até 12h do início da dor torácica (quanto antes, melhor).

Outras condições que podem causar SST19: angina de Prinzmetal; síndrome de Takotsubo; pós-infarto do miocárdio (padrão de aneurisma ventricular); embolia pulmonar aguda (derivações direitas médio-torácicas); tumor que invade o VE; após cardioversão elétrica (por alguns minutos. Neste caso, importante seriar ECG e observar se paciente apresenta dor torácica anginosa); hemorragia intracraniana; alguns fármacos antiarrítmicos do tipo IC; hipercalcemia; marca-passo (caracteriza-se pela presença de espícula, seguida de QRS com padrão semelhante a um BRE).

Por fim, importante ressaltar a síndrome de Wellens. Apesar de não ser considerada um SST, com oclusão arterial, representa um grupo de pacientes com dor torácica que necessita de estudo angiográfico precoce. 20  No padrão eletrocardiográfico típico, observa-se V2 e V3 com ponto J normal ou discretamente elevado (até 1 mm), associado a um segmento ST côncavo ou isoelétrico e uma onda T invertida com aspecto do tipo plus-minus, ou seja, uma onda T com uma porção inicial positiva seguida de uma porção final negativa. A maioria dos pacientes do estudo original apresentava lesão grave na ADA proximal. 20

Figura 22. Padrão de Wellens com ondas T plus-minus em V2 e V3: sinal de lesão grave na ADA proximal. 20


Identificar corretamente o supradesnivelamento do segmento ST (SST) de etiologia isquêmica é crucial para encaminhar o paciente rapidamente para intervenção coronariana. Por outro lado, o diagnóstico incorreto do SST, pode levar o paciente para a angiografia, ou pior, o uso de trombolítico de forma desnecessária. Anamnese e exame físico minuciosos, aliados ao reconhecimento do SST, tem o potencial de salvar vidas e de reduzir as sequelas cardíacas, geradas pela disfunção ventricular.


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APÊNDICE: os critérios eletrocardiográficos de sobrecarga ventricular esquerda (SVE)
- Critério de Sokolow-Lyon: S de V1 + R de V5 ou V6 > 35 mm. Outro critério: R de aVL > 11 mm.
- Critério de Cornell: R de aVL + S de V3 > 28 mm para homens ou > 20 mm para mulheres.
- Critério de Romhilt-Estes (soma de pontos): a) onda R ou S ≥ 20 mm no plano frontal (derivações periféricas) ou ≥ 30 mm no plano frontal (precordiais) = 3 pontos; b) alteração de ST-T (padrão strain) na ausência de digital = 3 pontos; c) sobrecarga atrial esquerda (fase negativa de P em V1 maior do que 1 quadradinho) = 3 pontos; d) desvio do eixo do QRS para esquerda = 2 pontos; e) QRS alargado ≥ 0,09 s sem padrão de bloqueio de ramo = 1 ponto; f) tempo de ativação ventricular (do início do QRS ao pico da onda R) ≥ 0,05 s em V5 e V6 = 1 ponto; g) padrão strain na presença de digital = 1 ponto. Se escore = 5 pontos, SVE; se escore = pontos, SVE provável.

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