Sobrevivente de parada cardiorrespiratória por qualquer ritmo, quando encaminhar para o cateterismo cardíaco? Parte 2: TOMAHAWK trial

Por Mardson Medeiros  / 

Na texto anterior, discutimos os resultados do COACT trial (link aqui), que estudou pacientes que sobreviveram a uma parada cardiorrespiratória (PCR) extra-hospitalar por ritmo chocável. 1,2

Trata-se de condição clínica extrema com elevada mortalidade, sendo as síndromes coronarianas agudas (SCA) responsáveis por até 60% das PCRs extra-hospitalares, nas quais uma causa cardíaca foi identificada. 3

O achado de supra de ST no eletrocardiograma (ECG) tem um bom valor preditivo positivo para lesões coronarianas agudas como gatilho para PCR, todavia, em um grupo muito maior de pacientes sem supra de ST no ECG, o espectro de possíveis causas é muito mais amplo e pode incluir tanto causas cardíacas como não cardíacas. 4,5

Em pacientes com infarto do miocárdio, a revascularização precoce teria o potencial de preservar a fração de ejeção e reduzir a possibilidade de sintomas agudos de insuficiência cardíaca (IC) e arritmias. Porém, o COACT trial sugeriu que, nos pacientes que sobreviveram a uma PCR por ritmo chocável, que se encontravam estáveis, sem supra de ST e sem nova instabilidade elétrica, não havia diferença de mortalidade em 90 dias, bem como em outros desfechos secundários no seguimento de 1 ano, quando comparados cateterismo cardíaco (CATE) precoce (até 2 horas) ou adiado (média de 5 dias após randomização, até definição neurológica). 1,2

No TOMAHAWK trial, foi testada a hipótese de que o CATE precoce (seguido de angioplastia, se necessária) seria superior ao CATE adiado (com angioplastia, se necessária) quanto a mortalidade por todas as causas em 30 dias, em pacientes sobreviventes de uma PCR extra-hospitalar com ECG sem supra de ST, independente do ritmo de parada. 6

Na definição estatística, foi estimado que seria necessário recrutar cerca de 558 pacientes para ter um poder de 80% de rejeitar a hipótese nula de não haver diferença entre os grupos (para entender melhor esse conceito, leia nossa postagem sobre reposição de ferro na IC, cujo link está aqui). O valor de P para significância estatística foi de 0,05.

Foram randomizados 554 pacientes, que sobreviveram a uma PCR extra-hospitalar de provável causa coronariana, para realização de CATE imediato (grupo precoce) ou adiado (grupo tardio). Todos os pacientes estavam sem evidência de supra de ST no ECG após ressuscitação. O desfecho primário escolhido foi morte por todas as causas. Os desfechos secundários incluíram morte por todas as causas ou déficit neurológico em 30 dias. Foi um estudo internacional, multicêntrico, aberto, realizado em 31 hospitais da Alemanha e Dinamarca, financiado pelo Centro de Pesquisa Cardiovascular Germânico. A análise foi por intenção de tratar.

Foram incluídos tanto pacientes que sobreviveram a uma PCR por ritmo chocável, quanto não chocável. Esta foi uma diferença de protocolo, quando comparado ao COACT trial.

Os pacientes do grupo precoce (CATE imediato) foram transferidos para hemodinâmica o mais rápido possível. Aqueles do grupo tardio foram primeiramente encaminhados para uma unidade de terapia intensiva (UTI) para uma investigação adicional sobre a causa da PCR e para tratamento. Neste caso, após o julgamento clínico, se a probabilidade de SCA como causa da PCR fosse elevada, o médico assistente poderia encaminhar o paciente para angiografia, depois de um período mínimo de 24 horas após a PCR. CATE antes de 24 horas seria permitido no caso de dano miocárdico substancial, que foi definido como aumento na troponina I ou T em pelo menos 70 vezes o limite superior da normalidade (LSN) ou um aumento no nível da creatina quinase em 10 vezes o LSN em teste realizado pelo menos 6 horas após a PCR, se instabilidade elétrica possivelmente causada pela SCA, desenvolvimento de choque cardiogênico ou nova elevação do segmento ST. Se o exame clínico e testes adicionais indicassem que a causa cardíaca era improvável, a angiografia poderia ser adiada ou até mesmo cancelada.

Dos 554 pacientes que foram randomizados, 281 foram alocados no grupo de CATE imediato e 273 no de CATE adiado.

Dentre as características basais dos pacientes, destacam-se a idade média de 70 anos (intervalo interquartil [IIQ], 60 a 78), sendo 30,4% de mulheres. Um total de 37,6% dos participantes tinham doença coronariana (DAC) conhecida e 19% tinham história prévia de infarto de miocárdio (IAM). Mais de 67% eram hipertensos. 52,3% dos pacientes do grupo CATE imediato apresentavam ritmo chocável, contra 58,7% do grupo de CATE adiado. Em cerca de 60% dos casos as medidas de BLS (com massagem torácica e ventilações) foram iniciadas por transeuntes. O tempo transcorrido entre a PCR e o início da reanimação cardiopulmonar (RCP) foi de 2 minutos (0-8 min) no grupo de CATE imediato versus 1 minuto (0-5 min) no de CATE adiado. O tempo de RCP foi de cerca de 15 minutos em ambos os grupos (8 a 20 min). No momento da admissão hospitalar, o Glasgow dos pacientes de ambos os grupos estava em 3 e a fração de ejeção em 45% (38-56%) no grupo de CATE imediato contra 44% (30-50%) no outro grupo. A angiografia foi realizada em 95,5% dos pacientes do grupo imediato versus 62,2% do outro grupo. O tempo médio entre a PCR e o CATE foi de 2,9 horas (2,2-3,9 h) no grupo de angiografia precoce versus 46,9 horas (26,1-116,6 h) no outro grupo, ou seja, aproximadamente dois dias. Em relação aos achados do CATE, a prevalência de DAC foi de 60,7% entre os pacientes no grupo de angiografia imediata e de 72,1% no grupo de exame postergado. Uma lesão culpada foi identificada em 38,1% dos pacientes de CATE imediato versus 43% no de exame eletivo. Angioplastia foi realizada em 37,2% dos pacientes no grupo de CATE de urgência contra 43,2% no eletivo. Reparem que, praticamente, só foram abordadas as lesões culpadas, ou seja, geralmente as que apresentavam sinais de instabilidade de placa, com imagem de trombo presente. 78% dos pacientes de ambos os grupos fizeram controle direcionado de temperatura.

Em relação aos resultados, um total de 530 de 554 pacientes (95,7%) foram incluídos na análise primária. Em 30 dias, 143 de 265 pacientes (54%) no grupo de angiografia imediata e 122 de 265 dos pacientes (46%) no grupo de exame adiado morreram (hazard ratio, 1,28; intervalo de confiança [IC] de 95%, 1,0 a 1,63; p = 0,06).

A principal causa de morte foi anóxia cerebral severa ou colapso circulatório, com números semelhantes entre os dois grupos.

Como a análise principal foi por intenção de tratar, precisamos prestar atenção ao crossover. Um total se 13 pacientes (4,6%) do grupo de angiografia imediata não fez o CATE precoce, sendo que 6 destes pacientes faleceram antes do exame. No grupo de angiografia adiada, 22 pacientes (8,1%) foram submetidos ao CATE nas primeiras 24 horas. Consideramos estes números como crossover de baixo potencial para comprometer o resultado do trabalho.

Na análise por protocolo, também não foi observada diferença estatística significativa entre os grupos  (hazard ratio, 1,21; IC 95%, 0,94 to 1,56).

O desfecho composto de morte ou déficit neurológico severo ocorreu mais frequentemente no grupo de CATE imediato (64,3%) do que naquele de CATE adiado (55,6%), com risco relativo (RR) de 1,16 (IC 95%, 1,0 a 1,34). Contudo, este é um desfecho secundário e com resultado diverso ao que foi encontrado no endpoint primário. Além disso, ao avaliar cada item separadamente deste desfecho composto, eles não alcançam significância estatística, sugerindo que este achado composto positivo pode ter ocorrido ao acaso. Os valores para pico de troponina, para incidência de sangramento importante, acidente vascular cerebral (AVC), déficit neurológico severo e terapia de substituição renal foram semelhantes entre os dois grupos.

A conclusão dos autores foi de que “entre os pacientes que sobreviveram a uma PCR extra-hospitalar sem elevação do segmento ST, a estratégia de realizar CATE imediato não demonstrou benefício em relação ao CATE seletivo ou adiado no que diz respeito à mortalidade por todas as causas em 30 dias”.

O que poderia explicar essa falta de benefício do CATE imediato?

Foram encontradas 40% de lesões coronarianas culpadas na população geral, com percentagem semelhante entre os grupos. O potencial benefício da angiografia e da revascularização (com stent ou cirúrgica) seria esperado no subgrupo de pacientes em que foram identificadas lesões agudas significativas. Nos outros 60% da amostra, o CATE precoce ou tardio não faria diferença. Ou seja, fazer a angiografia imediata pós-PCR de forma não selecionada, teria o potencial de expor os pacientes aos riscos do procedimento (sangramentos, dissecção de coronárias, pseudoaneurisma de artéria radial/femoral, etc.), sem trazer benefício adicional.

Excluir os pacientes com supra de ST ao ECG (portanto, que teriam provável oclusão total da coronária) e com choque cardiogênico (lesões coronárias muito instáveis podem gerar choque) reduziu o potencial benefício do CATE imediato em relação ao procedimento postergado.

Mesmo naquele subgrupo que realmente apresentava lesão culpada, o CATE adiado trouxe resultados semelhantes, quando comparado ao exame emergencial/imediato. Lembrando que análise de subgrupo tem o poder de sugerir e, não, de afirmar! Como explicar esse resultado? Veja, como as obstruções eram parciais (pacientes com supra de ST não estavam na amostra) e todos os pacientes receberam antiagregantes, anticoagulantes, estatinas e suporte clínico, isto parece ter sido suficiente para estabilizar a lesão até a realização da angiografia e a revascularização num segundo momento.

Importante ressaltar, também, que as lesões neurológicas tiveram mais efeito prognóstico nos pacientes deste estudo do que a injúria cardíaca, atenuando um possível benefício de revascularização miocárdica na população geral. Lesão cerebral foi de longe a causa mais frequente de morte na amostra do TOMAHAWK. Estes achados sugerem haver uma necessidade de se refinar melhor a escolha dos pacientes que teriam a real possibilidade de se beneficiar do cateterismo cardíaco. História clínica sugestiva de SCA e ECG com padrão de Wellens ou com ondas de Winter teriam potencial de benefício com CATE precoce. 7,8 Outros achados como déficit contrátil segmentar ao ecocardiograma poderia ajudar a selecionar melhor, contudo, nem isto daria garantia de haver lesões coronarianas agudas, pois, poderia ser um déficit crônico por sequela de infarto ou miocardite prévia. As troponinas estarão alteradas após toda PCR, independente da causa. Níveis muito elevados poderiam dar uma pista. Entretanto, estudos prévios sugeriram que estes marcadores teriam uma sensibilidade e especificidade apenas modesta. 9-15.


Considerações finais:

Vimos que tanto no COACT quanto no TOMAHAWK não houve diferença quanto a mortalidade com CATE precoce após PCR.

Quais grupos teriam potencial de se beneficiar com o CATE imediato, após PCR por FV, TV, assistolia ou AESP (atividade elétrica sem pulso)?

- pacientes com SCA por supra do segmento ST

- com história sugestiva de SCA e choque cardiogênico (pelo potencial de lesão coronariana aguda, grave e instável)

- com instabilidade elétrica (TV recorrente, novo episódio de FV, novo supra de ST): este subgrupo fez CATE imediato tanto no COACT quanto no TOMAHAWK, independente do grupo inicial randomizado 

- pacientes sem supra de ST no ECG, mas com história clínica compatível com SCA e alterações da síndrome de Wellens ou de Winter (nível de evidência C)

Nos demais grupos de pacientes sem supra de ST no ECG, parece razoável adiar o CATE até definição neurológica. Lembrar que mais de 64% dos pacientes no COACT trial tinham infra de ST ou ondas Ts negativas no ECG e isto não foi suficiente para dar vantagem ao CATE imediato em relação ao exame adiado.


Fontes:

1. Lemkes JS, Janssens GN, van der Hoeven NW, et al. Coronary angiography after cardiac arrest without ST-segment elevation. N Engl J Med. 2019; 380(15):1397-1407. doi:10.1056/NEJMoa1816897

2. Lemkes JS, Janssens GN, van der Hoeven NW, et al. Coronary Angiography After Cardiac Arrest Without ST Segment ElevationOne-Year Outcomes of the COACT Randomized Clinical TrialJAMA Cardiol.2020;5(12):1358–1365. doi:10.1001/jamacardio.2020.3670

3. Geri G, Passouant O, Dumas F, et al. Etiological diagnoses of out-of-hospital cardiac arrest survivors admitted to the intensive care unit: insights from a French registry. Resuscitation 2017;​117:​66-72.

4. Dumas F, Cariou A, Manzo-Silberman S, et al. Immediate percutaneous coro-nary intervention is associated with bet-ter survival after out-of-hospital cardiac arrest: insights from the PROCAT (Parisian Region Out of hospital Cardiac ArresT) Registry. Circ Cardiovasc Interv 2010;​3:​ 200-7. 

5. Zanuttini D, Armellini I, Nucifora G, et al. Predictive value of electrocardiogram in diagnosing acute coronary artery lesions among patients with out-of-hospital-car-diac-arrest. Resuscitation 2013;​84:​1250-4.

6. Desch S, Freund A, Akin M, et al. Angiography after out-of-hospital cardiac arrest without ST-segment elevation. TOMAHAWK Trial. N Engl J Med. 2021;Epub ahead of print.

7. de Zwaan CBF, Wellens HJ: Characteristic electrocardiographic pattern indicating a critical stenosis high in left anterior descending coronary artery in patients admitted because of impending myocardial infarction. Am Heart J 1982;103:730–736

8. de Winter RJ, Verouden NJ, Wellens HJ, Wilde AA; Interventional Cardiology Group of the Academic Medical Center. A new ECG sign of proximal LAD occlusion. N Engl J Med. 2008 Nov 6;359(19):2071-3. doi: 10.1056/NEJMc0804737. PMID: 18987380.

9. Dumas F, Manzo-Silberman S, Fichet J, et al. Can early cardiac troponin I mea-surement help to predict recent coronary occlusion in out-of-hospital cardiac arrest survivors? Crit Care Med 2012;​40:​1777-84.

10. Garcia-Tejada J, Jurado-Román A, Rodríguez J, et al. Post-resuscitation elec-trocardiograms, acute coronary findings and in-hospital prognosis of survivors of out-of-hospital cardiac arrest. Resuscita-tion 2014;​85:​1245-50.

11. Lee S-E, Uhm J-S, Kim J-Y, Pak H-N, Lee M-H, Joung B. Combined ECG, echo-cardiographic, and biomarker criteria for diagnosing acute myocardial infarction in out-of-hospital cardiac arrest patients. Yonsei Med J 2015;​56:​887-94.

12. Sideris G, Voicu S, Dillinger JG, et al. Value of post-resuscitation electrocardio-gram in the diagnosis of acute myocar-dial infarction in out-of-hospital cardiac arrest patients. Resuscitation 2011;​82:​ 1148-53

13.  Stær-Jensen H, Nakstad ER, Fossum E, et al. Post-resuscitation ECG for selection of patients for immediate coronary angi-ography in out-of-hospital cardiac arrest. Circ Cardiovasc Interv 2015;​8(10):​e002784.

14. Voicu S, Sideris G, Deye N, et al. Role of cardiac troponin in the diagnosis of acute myocardial infarction in comatose patients resuscitated from out-of-hospital cardiac arrest. Resuscitation 2012;​83:​452-8. 

15. Waldo SW, Chang L, Strom JB, O'Brien C, Pomerantsev E, Yeh RW. Predicting the presence of an acute coronary lesion among patients resuscitated from cardiac arrest. Circ Cardiovasc Interv 2015;​8(10):​ e002198.


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