Sobrevivente de parada cardiorrespiratória por ritmo chocável, quando direcionar para o cateterismo cardíaco? Parte 1: COACT trial

Por Mardson Medeiros  /


A parada cardiorrespiratória (PCR) é uma situação clínica de elevada mortalidade. Aproximadamente 40% dos pacientes que são ressuscitados com sucesso inicial de uma parada cardiorrespiratória por fibrilação ventricular (FV) ou taquicardia ventricular (TV) sem pulso acabam falecendo depois.1

Pacientes com etiologia evidente de PCR por FV/TV, como por exemplo renal crônico com potássio muito elevado ou histórico de TV por doença de Chagas, não necessariamente precisariam fazer cateterismo cardíaco (CATE).

Todavia, como a doença coronariana isquêmica é a causa mais frequente de PCR, surgiu o questionamento se os sobreviventes de PCR por FV ou TV de causa ainda não definida ou com suspeita isquêmica deveriam ser encaminhados imediatamente para o cateterismo cardíaco (CATE) ou não. 2

O COACT trial foi um estudo multicêntrico, randomizado, aberto, que avaliou 552 pacientes de 19 centros holandeses, de 2015 a 2018, que sobreviveram a episódio extra-hospitalar de PCR por ritmo chocável, sem sinais de infarto com supra de ST (IAMCSST) no ECG após ressuscitação cardiopulmonar (RCP) e que estavam inconscientes no momento do retorno da circulação espontânea. O seguimento foi de 1 ano. A análise foi por intenção de tratar. 3-4

Os pacientes foram divididos em dois grupos. No primeiro, seriam encaminhados para o CATE de imediato, realizando angioplastia se necessária. No segundo grupo, primeiramente aguardava-se a recuperação neurológica do paciente para somente depois, em outro momento, fazer o CATE, realizando angioplastia se necessária.

Os pacientes alocados no grupo de CATE imediato foram encaminhados para realização do exame o mais breve possível, sendo iniciado em até 2 horas da randomização. No grupo de CATE eletivo, o procedimento foi adiado até definição neurológica do paciente, em geral ocorrendo após a alta da unidade de terapia intensiva (UTI).

Se um paciente inicialmente randomizado para o grupo de CATE eletivo mostrasse sinais de choque cardiogênico, arritmias recorrentes ameaçadoras à vida ou isquemia recorrente durante a hospitalização, o CATE de urgência seria realizado. Como a análise foi por intenção de tratar, precisamos ficar alertas quanto ao crossover.

O desfecho primário escolhido foi o de sobrevivência em 90 dias. Portanto, desfecho duro, o que nos deixa menos preocupados em relação ao fato de o estudo ter sido aberto. A análise de 1 ano foi para os desfechos secundários pré-especificados: morte, infarto do miocárdio (IAM) desde a hospitalização inicial, revascularizações de repetição desde a hospitalização inicial, choque do cardiodesfibrilador implantado (CDI), qualidade de vida e hospitalização por insuficiência cardíaca (IC).

Qualidade de vida foi acessada pelo questionário RAND-36 (que varia de 0 a 100, onde 0 indica máxima deficiência e 100 indica sem limitações) em 1 ano. 5

Das características basais dos pacientes, destacamos os antecedentes de 26,5% (grupo imediato) x 28,7% (grupo eletivo) para IAM, 15,6% x 9,3% para revascularização miocárdica prévia (CRVM), 16,7% x 23% para angioplastia, 35,6% x 36,4% para algum grau de doença coronariana (DAC), 64% x 69,3% para algum sinal de isquemia no ECG pós-PCR, 2 min x 2 min de tempo para início do BLS (reanimação inicial) e 15 min x 15 min (8 a 20 min) para o retorno da circulação espontânea (RCE).

Conforme descrito acima, mais de 64% dos pacientes apresentavam alguma alteração de ECG, sendo considerado achado válido quando havia depressão de ST de 1 mm ou mais em duas derivações contíguas, ondas Ts invertidas em duas derivações contíguas ou ambas.

Os resultados mostraram que, em 90 dias, 176 de 273 pacientes (64.5%) no grupo de angiografia imediata e 178 de 265 pacientes (67,2%) no grupo de angiografia eletiva estavam vivos (odds ratinho, 0,89; IC 95%, 0,62 a 1,27; p = 0,51). 

Em 1 ano, os dados de 522 dos 552 pacientes estavam disponíveis (94,6%) para análise. Destes pacientes, 79% eram homens e a idade média era de 65,4 +- 12,4 anos. Um total de 162 de 264 pacientes (61,4%) no grupo de CATE imediato e 165 de 258 pacientes (64,0%) no grupo de CATE eletivo estavam vivos (odds ratio, 0,90; IC 95%, 0,63-1,28). 

O desfecho composto de morte, infarto do miocárdio, revascularizações repetidas e hospitalizações foi alcançado por 112 pacientes (42,9%) no grupo de angiografia imediata e 104 pacientes (40,6%) no grupo de angiografia eletiva (odds ratio, 1,10; IC 95%, 0,76-1,56).

Não foram observadas diferenças significativas entre os grupos para os outros desfechos em 1 ano de seguimento. Por exemplo, a taxa de choques pelo CDI foi de 20,4% no grupo imediato e de 16,2% no grupo eletivo (odds ratio, 1,32; IC 95%, 0,66-2,64).

O CATE foi realizado em 256 pacientes (97%) do grupo imediato e em 167 pacientes (64,7%) do grupo eletivo. 

O tempo médio da randomização até a realização da angiografia foi de 0,9 horas (intervalo de interquartil [IQ], 0,6-1,2) no grupo imediato e 119,9 horas (IQ, 47,7-200,2), ou seja, aproximadamente 5 dias, no grupo eletivo.

Oclusão trombótica aguda foi encontrada em 3,1% dos pacientes (8 de 256) no grupo imediato e 7,8% dos pacientes (13 de 167) no grupo de CATE eletivo.

Oclusão total crônica em uma das artérias coronárias foi encontrada em 37,5% dos pacientes (96 de 256) no grupo imediato e 34,7% dos pacientes (58 de 167) no grupo eletivo.

A taxa de angioplastia foi de 32,6% (86 de 264) no grupo imediato e 24,4% (63 de 258) no grupo eletivo.

CRVM foi realizada em 6,1% no grupo imediato (16 de 264) e 8,1% (21 de 258) no grupo eletivo.

Mais de 90% dos pacientes em cada grupo foram tratados com controle direcionado de temperatura e ventilação mecânica.

Mortalidade entre 90 dias e 1 ano foi de 1,9% no grupo imediato e 2,3% no grupo eletivo.

Além disso, em uma análise por protocolo que excluiu os cruzamentos, o OR para 1 ano foi de 0,92 (IC 95%, 0,64-1,32), portanto, sem diferença significativa entre os grupos. Sugerindo que o crossover não foi suficiente para colocar dúvida nos resultados encontrados.

Ocorreram menos de 1% de IAM, após a randomização, em ambos os grupos. Em 1 ano, novas angioplastias foram realizadas em 3% dos pacientes de cada grupo.

Escores de qualidade de vida foram obtidos em 235 de 329 pacientes que sobreviveram em 1 ano. A média para o RAND-36 tanto físico quanto mental foi de 50 para ambos os grupos.

Os resultados deste estudo sugerem que a mortalidade dos sobreviventes de PCR ocorre principalmente nos primeiros 90 dias. Depois disso, cai para cerca de 2% entre 90 dias e 1 ano.

Os achados gerais representaram uma mudança de paradigma, pois estudos prévios observacionais sugeriam benefício com o CATE precoce, conforme observado em metanálise, publicada em 2017. 6  Esta diferença pode estar relacionada ao desenho observacional dos estudos prévios, com potencial viés de seleção em favor da angiografia precoce.

Ainda em relação ao COACT trial, embora quase dois terços dos pacientes tivessem DAC, a maioria apresentava lesões estáveis, com oclusões trombóticas em somente 5% dos casos, o que pode justificar ter ocorrido menos de 1% de IAM entre 90 dias e 1 ano.

Limitações. Devido a natureza do estudo, os médicos sabiam em quais grupos os pacientes foram alocados. Isto é menos problemático para os desfechos duros, como a mortalidade em 90 dias. Mas aumenta risco de viés no caso de desfechos soft como qualidade de vida, ou de desfechos que dependem de indicação médica como internamento por IC ou nova angioplastia. Todos os desfechos na análise de 1 ano foram exploratórios, de menor poder estatístico, uma vez que a amostra do COACT foi calculada para avaliar mortalidade em 90 dias. Os resultados deste trial não se aplicam para pacientes em choque cardiogênico, com disfunção renal severa ou elevação do segmento ST, pois entraram nos critérios de exclusão. Não houve registro de dados sobre a terapia medicamentosa usada no seguimento.

Os autores concluíram que “em pacientes que foram ressuscitados com sucesso após uma PCR extra-hospitalar e sem sinais de IAMCSST, a estratégia de angiografia imediata não foi superior a estratégia de angiografia adiada no que diz respeito a desfechos clínicos de 1 ano. A coronariografia destes pacientes poderia ser adiada até recuperação neurológica sem afetar os desfechos clínicos.”


No próximo texto, veremos os achados do estudo TOMAHAWK. Continua… Leia a parte 2, clicando aqui! E a parte 3, aqui!


Fontes:

1. Patel N, Patel NJ, Macon CJ, et al. Trends and outcomes of coronary angiography and percutaneous coronary intervention after out-of-hospital cardiac arrest associated with ventricular fibrillation or pulseless ventricular tachycardia. JAMA Cardiol. 2016;1(8):890-899. doi:10.1001/jamacardio.2016.2860

2. Spaulding CM, Joly LM, Rosenberg A, et al. Immediate coronary angiography in survivors of out-of-hospital cardiac arrest. N Engl J Med. 1997; 336(23):1629-1633. doi:10.1056/ NEJM199706053362302

3. Lemkes JS, Janssens GN, van der Hoeven NW, et al. Coronary angiography after cardiac arrest without ST-segment elevation. N Engl J Med. 2019; 380(15):1397-1407. doi:10.1056/NEJMoa1816897

4. Lemkes JS, Janssens GN, van der Hoeven NW, et al. Coronary Angiography After Cardiac Arrest Without ST Segment ElevationOne-Year Outcomes of the COACT Randomized Clinical TrialJAMA Cardiol.2020;5(12):1358–1365. doi:10.1001/jamacardio.2020.3670

5. Hays RD, Sherbourne CD, Mazel RM. The RAND 36-Item Health Survey 1.0. Health Econ. 1993;2(3):217-227. doi:10.1002/hec.4730020305

6. Khan MS, Shah SMM, Mubashir A, et al. Early coronary angiography in patients resuscitated from out of hospital cardiac arrest without ST-segment elevation: a systematic review and meta-analysis. Resuscitation. 2017;121:127-134. doi:10.1016/j.resuscitation.2017.10.019

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